A princípio, o mundo da religião não ficou particularmente entusiasmado com a chegada do menino Potter. Por vários anos, a série Harry Potter, de J. K. Rowling, esteve no topo das listas da Associação Americana de Bibliotecas de livros mais desafiadores (razões citadas em 2001: “antifamília, ocultismo/satanismo, ponto de vista religioso e violência”). Protestantes evangélicos questionavam: a representação positiva da bruxaria desencaminharia crianças? E alguns católicos também estavam preocupados. Do cardeal Joseph Ratzinger (hoje Papa Bento XVI), que alertou que “seduções sutis” no texto poderiam “corromper a fé cristã”, ao reverendo Ronald A. Barker, sacerdote de Wakefield que arrancou os livros da biblioteca escolar de sua paróquia.
Mas, nos últimos anos, escritores e pensadores religiosos passaram a se entusiasmar por Harry – tanto a Christianity Today, uma revista evangélica, quanto L’Osservatore Romano, o jornal do Vaticano, elogiaram o último filme. O Christian Broadcasting Network, canal de Pat Robertson, apresenta em seu website uma seção especial sobre A Controvérsia de Harry Potter, que reconhece que “importantes pensadores cristãos têm opiniões muito diferentes sobre os produtos Harry Potter e como os cristãos devem responder a eles”.
Ético, positivo e tolerante
Ao mesmo tempo, estudiosos da religião começaram a desenvolver uma abordagem com maiores nuances sobre o fenômeno Potter, com alguns argumentando que a extremamente popular série de livros e filmes contém mensagens éticas positivas e um arco narrativo que vale a pena ser examinado academicamente e até teologicamente.
Os acadêmicos estão interessados sobretudo no que os livros têm a dizer sobre os dois grandes temas de preocupação das pessoas de fé – moralidade e mortalidade -, mas alguns também investigam o que a série diz sobre tolerância (Harry e seus amigos são notavelmente abertos a pessoas e criaturas diferentes), intimidação, a natureza e presença do mal na sociedade e a existência do sobrenatural.
O interesse acadêmico nos livros de Harry Potter começou bem antes do fim da série e não dá sinais de diminuir. Pipocaram livros acadêmicos com títulos tão diversos quanto The Ivory Tower and Harry Potter: Perspectives on a Literary Phenomenon (A Torre de Marfim e Harry Potter: Perspectivas Sobre um Fenômeno Literário) e Harry Potter’s World: Multidisciplinary Critical Perspectives (O Mundo de Harry Potter: Perspectivas Críticas Multidisciplinares).
No último outono, a Academia Americana de Religião teve em sua convenção anual uma mesa chamada A Forma Potteriana de Morte: A Concepção de Mortalidade de J. K. Rowling. E há uma grande quantidade de artigos em periódicos religiosos com títulos como Procurando Deus em Harry Potter e Envolvendo-se na Espiritualidade de Harry Potter ou mesmo mais complexos como Harry Potter e o Batismo da Imaginação, Harry Potter e o Problema do Mal e Harry Potter e Bibliotecas Teológicas.
Religião & Cultura Pop
“Existe todo um campo explosivo de religião e cultura popular buscando não apenas paralelos exatos, seja concordando ou contestando crenças religiosas, mas também considerando essas histórias um reflexo das sensibilidades espirituais ou religiosas da cultura”, afirma Russell W. Dalton, professor-assistente de educação cristã na Escola Brite Divinity, no Texas e autor de Faith Journey through Fantasy Lands: A Christian Dialogue with Harry Potter, Star Wars, and The Lord of the Rings (Jornada da Fé Através de Terras da Fantasia: um Diálogo Cristão com Harry Potter, Guerra nas Estrelas e O Senhor dos Anéis).
“Quando histórias se tornam tão populares quanto as de Harry Potter, elas deixam de refletir apenas as opiniões religiosas do autor, mas se tornam artefatos da cultura, dizendo algo sobre a cultura que as abraçou”, diz Dalton. “E esse é certamente o caso de Harry Potter.”
O interesse acadêmico no menino que sobreviveu ao mal faz parte de uma busca maior de escritores e estudiosos da religião por sinais da fé, e em particular por repercussões da narrativa cristã, na cultura. A busca não é nova, embora esteja historicamente concentrada na grande arte – como pintura e literatura. Mais recentemente, jornalistas de religião se voltaram para a cultura popular, escrevendo livros como O Evangelho Segundo os Simpsons, de Mark Pinsky, e The Gospel According to the Coen Brothers (O Evangelho segundo os irmãos Coen), de Cathleen Falsani, enquanto pesquisadores examinam o papel da religião em clipes da Madonna e em séries de TV como Jornada nas Estrelas e Lost.
“Precisamos nos envolver no diálogo que ocorre entre as pessoas”, defende Jeffrey H. Mahan, professor de ministério, mídia e cultura da Escola Iliff de Teologia, no Colorado, e um pioneiro no estudo da relação entre religião e cultura popular.
Também existe um longo histórico do uso da literatura infantil como forma de pedagogia religiosa. Amy Boesky, professora-associada de inglês do Boston College, afirma que o uso da literatura infantil para o ensino de valores morais remete a, pelo menos, Erasmo, que escreveu durante a Renascença, e inclui clássicos que vão de O Peregrino, de 1678, a Uma Dobra no Tempo, de 1962. O exemplo mais conhecido são os sete volumes de As Crônicas de Nárnia, escritos no início da década de 1950 pelo apologista cristão C. S. Lewis, que, além de servirem como divertida literatura fantástica, são frequentemente lidos como uma alegoria cristã, sendo o heróico leão Aslan obviamente uma metáfora de Cristo.
Embora alguns acadêmicos agora enxerguem Cristo em Harry Potter, os paralelos são mais sutis e, sem dúvida, amplamente ofuscados por uma torrente estonteante de feitiços mágicos, criaturas estranhas e jogos de quadribol. Harry em si é um complexo herói adolescente, assombrado pelo assassinato de seus pais, por vezes em conflito com seu papel no mundo e confuso, como qualquer um estaria, por sua estranha conexão mental com seu antagonista Voldemort.
“Os livros de Potter não são explicitamente religiosos como as narrativas de Nárnia, mas há a forte presença do mal, e temas do bem e do mal não são apenas filosóficos, mas também questões teológicas¿, observa Gareth B. Matthews, professor de filosofia na UMass Amherst.
Versões de Cristo e Deus
Alguns pesquisadores levam a busca por temas do Evangelho na série Harry Potter bem longe. Oona Eisenstadt, professora-assistente de estudos religiosos do Pomona College, faz uma análise extremamente elaborada, sustentando que Rowling explora a natureza complexa de personagens bíblicos apresentando duas versões de cada nos livros de Potter. os bruxos Severo Snape e Draco Malfoy, argumenta, representam interpretações concorrentes de Judas – ambos buscando a morte de Dumbledore, mas um porque está servindo o mal e o outro porque essa é uma exigência do destino. Eisenstadt enxerga Dumbledore e Harry, cada um à sua maneira, como figuras de Cristo – talvez Harry representando Jesus humano e Dumbledore o divino. E ela acredita que a descrição de elementos da comunidade judaica segundo o Novo Testamento ocorre através dos duendes (banqueiros repulsivos) e do Ministério da Magia (legalista e bitolado).
“Ao invés de oferecer uma alegoria direta, que obriga leitores juvenis a engolir a teologia, Rowling oferece representações dúbias, que são um convite à reflexão para jovens e todos nós”, escreve Eisenstadt.
Crítica ao fundamentalismo
Alguns estudiosos de religião parecem mais interessados na série Potter como um comentário social – em particular, eles focam na recusa de Harry em participar da discriminação aos trouxas demonstrada por alguns bruxos e feiticeiros de sangue puro, assim como na hostilidade a gigantes e fantasmas, entre outras criaturas mágicas ameaçadoras, que alguns personagens manifestam. “Um dos temas gerais da série Harry Potter tem a ver com perseguição com base na raça”, afirma Lana A. Whited, professora de inglês do Ferrum College, na Virgínia, e autora de The Ivory Tower And Harry Potter. Já Dalton, da Escola Brite Divinity, leva o argumento mais além, sugerindo que a associação de tolerância a personagens heróicos é uma crítica ao fundamentalismo.
“Para Dumbledore e Harry e seus amigos não importa se você nasceu trouxa ou gigante”, diz Dalton, “enquanto está claro que os Comensais da Morte, os malvados, são intolerantes às pessoas diferentes deles”.
Vozes divergentes
Nem todos os acadêmicos são tão entusiásticos. Elizabeth Heilmant, professora-associada de pedagogia da Universidade Estadual de Michigan e editora do livro Critical Perspectives on Harry Potter aponta que, diferente de Hermione, que abraça a causa dos elfos domésticos, “você nunca vê Harry Potter dedicando-se a uma causa em favor dos oprimidos. Ele é na verdade um herói relutante e não estou convencida de que a narrativa o faz efetivamente ir além de seus motivos pessoais”.
O interesse dos estudiosos de religião na série Potter se intensificou com o muito esperado lançamento do sétimo e último livro, Harry Potter e As Relíquias da Morte, publicado em 2007. A questão sobre a possível morte de Harry foi muito debatida antes do lançamento do livro, e não é preciso ter um diploma em divindade para ver temas de sacrifício e ressurreição na resolução dessa questão.
“Lembro-me da espera pelo livro sete e das conversas com meus filhos sobre se Harry Potter iria morrer e muitas dessas conversas envolviam até que ponto Rowling faria dele um livro cristão: será que Harry vai morrer e salvar o mundo?”, diz Stephen Prothero, professor de religião da Universidade de Boston.
O desfecho da história (alerta de spoiler!) é o ponto de partida para muitos estudiosos de religião, porque nas cenas finais, Harry compreende “que sua função era caminhar calmamente em direção aos braços acolhedores da Morte”, escreve Rowling. Harry permite que ele seja morto – ou pelo menos atingido por uma maldição fatal – para salvar o mundo da feitiçaria, mas depois retorna à vida, encorajado por uma visão de Dumbledore que lhe diz: “retornando, você pode garantir que menos almas sejam mutiladas, menos famílias sejam destruídas”. Harry então vence Voldemort e, segundo a descrição do livro, é visto pela multidão que testemunha a batalha final como “seu líder e símbolo, seu salvador e seu guia”.
“No final do último livro, temos um Potter agonizante que ressurge – ele precisa ser morto para livrar o mundo do mal personificado por Voldermort”, diz Paul V. M. Flesher, diretor do programa de estudos religiosos da Universidade de Wyoming e autor do artigo sobre Harry Potter para o Journal of Religion and Film. “Existe um padrão cristão nesta história. Não é apenas o bem contra o mal. Rowling não está sendo evangélica – isso não é C. S. Lewis -, mas ela conhece tais histórias e está claro que ela junta as peças de uma maneira que faz sentido e que ela sabe que os leitores vão acompanhar.”
Escritora confirma analogia religiosa
A própria Rowling, após a publicação do livro final, disse acreditar que os temas religiosos haviam “sempre estado óbvios”, e os acadêmicos observam pelo menos duas citações não nomeadas do Novo Testamento na série, uma no túmulo da mãe e irmã de Dumbledore (“Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”, Mateus), e uma no túmulo dos pais de Harry (“Ora, o último inimigo a ser destruído é a morte”, 1 Coríntios).
A última batalha de Harry com a morte consolidou o romance entre acadêmicos de religião e a série de Potter, com as controvérsias iniciais a respeito de varinhas e bruxaria sendo ofuscadas pela discussão do caráter de Harry e suas escolhas de vida.
“Ao invés de condenar certos elementos da série como malignos – algo que muitos cristãos fizeram -, devemos convidar nossas comunidades a apreciar mais profundamente tanto as similaridades quanto os contrastes entre as histórias e nossa fé cristã”, Mary Hess, do Luther Seminary de Minnesota, escreve no periódico Word & World.
De fato, Leonie Caldecott, escrevendo no Christian Century alguns meses após a publicação do sétimo livro, opina: “Como é revelado em Relíquias da Morte, longe de enganar a morte, Harry deliberadamente abraça a morte quando finalmente entende que isso é necessário para salvar os outros, e não apenas aqueles que ele particularmente ama.”
Dumbledore, no início da série, deixa claro suas próprias visões sobre o tema, dizendo: “Para uma mente bem organizada, a morte é apenas a próxima aventura.”
Na conferência da Academia Americana de Religião, os participantes exploraram a cena final, bem como outras ilustrações da morte na série de Potter, buscando por significados. Paul Corey, professor de estudos religiosos da Universidade McMaster, do Canadá, retoricamente perguntou: “Qual é a diferença entre um cristão e um Comensal da Morte?”. Este foi o ponto de partida para refletir sobre como a busca de Voldemort para vencer a morte poderia diferir de, ou se assemelhar, ao desejo cristão pela vida eterna no paraíso. E Lois Shepherd, especialista em bioética da Universidade da Vírginia, disse que encontrou na série um argumento contra o prolongamento da vida física a todo custo – uma rejeição ao que ela chamou de “busca para evitar a morte” que, segundo ela, foi representada pelo debate sobre Terri Schiavo no mundo real.
“A morte, na filosofia da série, não deve ser temida”, Shepherd diz. “Na verdade, são aqueles que mais temem a morte – Voldemort sendo o exemplo supremo disso – que se envolvem em atos inomináveis de maldade.”