No ápice do desespero causado pela pandemia de coronavírus na Itália, circulou fortemente uma publicação em diversos portais cristãos ao redor do mundo, inclusive no Brasil, com um suposto testemunho de conversão de um médico ateísta que teria se convencido da existência de Deus através da atuação de um veterano pastor junto aos doentes na região da Lombardia.
Como o relato se espalhou a partir das redes sociais e chegou ao blog de um jornalista italiano, e a partir daí, chegou a portais de notícias com anos de publicação, foi tomado como real por milhões de pessoas que o leram. No entanto, cinco elementos da história compartilhada despertaram dúvidas quanto à sua autenticidade.
Uma das notícias sobre o caso trazia o título “Testemunho de Iulian Urban, 38 anos. Ele é médico na Lombardia”. O texto conta o testemunho de um médico que decide retornar à fé cristã depois de conhecer um pastor de 75 anos. O homem é um paciente que usa seu tempo no hospital para ler a Bíblia para outros pacientes e se preocupar com eles, trazendo paz, conforto e fé até à equipe médica, que costumava ter convicções ateístas.
Esta história já foi traduzida para vários idiomas (incluindo italiano, inglês, espanhol, francês e português) e lida por milhões na Europa e na América Latina. Mas a história pode ser um caso de notícias falsas. Depois de fazer algumas pesquisas, o portal Evangelical Focus publicou um relatório apontando pelo menos cinco evidências que levantam suspeitas sobre a publicação.
O primeiro ponto é a foto usada nos primeiros portais onde o relato foi publicado: trata-se de uma imagem de um médico, provavelmente foi baixada da internet, que integra uma galeria de “34 fotos comoventes de médicos sobrecarregados de trabalho…”. A página tem um link para a fonte original da foto: Nicola Sgarbi, que é, sim, um médico italiano.
Nicola postou a foto em seu perfil do Facebook no dia 14 de março, dizendo que tirou a selfie “depois de 13 horas na UTI”. Mas ele não menciona Deus nem compartilha um testemunho de conversão à fé cristã.
O segundo ponto é a fonte original, com o título “Testemunho via Gianni Giardinelli”, que pode ser lido na parte inferior do texto em algumas das versões mais antigas. Uma pesquisa na internet mostra que Gianni Giardinelli é um ator francês de origem italiana, morando em Paris. Em suas contas de mídia social não há vestígios desse testemunho.
A fonte mencionada poderia ser outra pessoa com o mesmo nome? Sim, mas parece não haver meios de entrar em contato com essa pessoa.
O terceiro ponto é o nome do médico. “Iulian” e “Urban” não são um nome e sobrenome italianos, mas romenos. É claro que o médico da história poderia ser um trabalhador de saúde romeno trabalhando na Itália, mas esse não é o caso.
Emanuel Contac, um teólogo em Bucareste, confirmou-nos que Iulian Urban é a pessoa que primeiro compartilhou o testemunho na Romênia, que situa a origem da história naquele país. Urban não é médico, mas advogado, ex-senador romeno entre 2008-2012. Ele tem milhares de seguidores nas mídias sociais, o que ajudaria a explicar por que a história se tornou viral em primeiro lugar.
Mas há algo mais. O próprio Emanuel Contac entrou em contato com Iulian Urban para obter mais detalhes sobre a história. A resposta do político em uma série de mensagens privadas era sempre que o médico italiano não queria ser identificado e tinha todo o direito de permanecer anônimo, respeitando sua privacidade.
Depois de mais de uma dúzia de mensagens, Emanuel desistiu de tentar obter mais detalhes: “Decidi não aprofundar esse assunto. A conversa foi um exercício de futilidade e pensamento absurdo”.
O quarto ponto são as variações da história. Outro motivo que causa desconfiança é que existem várias versões do testemunho. Algumas versões não falam de um pastor, mas de um padre. A torção pode ser rastreada até a página do Facebook “Ortodoxia Tinerilor”, também baseado na Romênia, que publicou a história três vezes em dois dias – 18 e 19 de março. Na segunda vez, falou de um pastor, mas o primeiro e o terceiro posts se referiram a um padre. A versão mais popular foi a do padre, com mais de quatro mil interações.
O quinto ponto é a opinião dos cristãos na Itália. Os líderes cristãos na Itália desconfiam fortemente dessa história. Um membro do conselho da Aliança Evangélica Italiana foi consultado e então contatou pastores evangélicos de denominações como as Assembleias de Deus e as Igrejas Romenas na Itália. Todos concordaram que o relato “não é confiável”.
Todos esses elementos apontam para a conclusão de que a história do médico da Lombardia é um exemplo de notícias falsas. Existe uma chance de que possa haver alguma verdade na história e que o testemunho tenha sido fortemente distorcido ao ser compartilhado? Sim, claramente essa é uma possibilidade. Pode ser que as diferentes publicações sejam uma versão de uma versão de uma história verdadeira. Mas, mesmo que fosse esse o caso, deve-se compartilhar informações que sabidamente incluem vários aspectos falsos? A resposta óbvia, pelo bem da credibilidade de portais cristãos, é não.