Pesquisadores enxergam oposição cristã às pesquisas como interferência no Estado laico.
Católicos argumentam que questão não é religiosa, mas ligada ao direito humano à vida.
O Supremo Tribunal Federal (STF) se reúne para decidir nesta quarta-feira (5) se permite ou não a pesquisa com células-tronco embrionárias humanas no Brasil, liberada originalmente há três anos pela Lei de Biossegurança. O tribunal julga o mérito de uma ação direta de inconstitucionalidade que quer barrar os estudos, os quais supostamente ferem o direito à vida estabelecido na Constituição. A decisão coloca muita coisa em jogo tanto para os opositores quanto para os defensores desse tipo de estudo.
Para os cientistas brasileiros, trata-se da oportunidade de tomar parte na área mais promissora da pesquisa biomédica moderna, que abre a possibilidade — ainda longe de ser realizada — de tratar doenças hoje incuráveis e de entender em detalhes sem precedentes o desenvolvimento do organismo humano. Por outro lado, grupos religiosos, em especial a Igreja Católica, consideram que a liberação da pesquisa com embriões seria um primeiro passo perigoso rumo à legalização do aborto e a outras práticas vistas como ameaça ao direito à vida.
Se não fosse pela origem controversa das células-tronco embrionárias humanas (CTEHs, para abreviar), sua aplicação terapêutica dificilmente seria questionada. Originárias de embriões com poucos dias de vida e apenas uma centena de células, os chamados blastocistos, as CTEHs são curingas fisiológicas, com capacidade de assumir a forma e a função de qualquer tecido. Neurônios, células musculares, ósseas ou pancreáticas — todos derivam da massa de células no interior do blastocisto. Em tese, seria possível produzir os tecidos perdidos em pessoas com lesões ou doenças degenerativas e recolocá-los nos doentes, curando males como mal de Parkinson e diabetes tipo 1.
O problema é que esse potencial todo só está disponível porque essas células vão “construir” todo o corpo do futuro bebê. A única maneira de obtê-las, portanto, é destruir o embrião — daí a comparação do processo a um aborto ou a um assassinato. “Salvar um e matar outro não é resposta”, declarou em entrevista coletiva o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Geraldo
Lyrio. Os católicos defendem que as células-tronco adultas — presentes em locais como a medula óssea e o cordão umbilical dos recém-nascidos — têm tanto potencial quanto as embrionárias, além de não incorrerem nos mesmos problemas éticos.
Contra o Estado laico?
Os cientistas discordam — de fato, embora alguns estudos tenham mostrado que as células-tronco adultas podem ser pluripotentes, ou seja, conseguem se transformar em diversos tipos de tecido, só as CTEHs tiveram tal capacidade confirmada. “O que está acontecendo é uma interferência da Igreja numa coisa que, goste ela ou não, foi aprovada pela sociedade”, ataca Antonio Carlos Campos de Carvalho, médico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e responsável por alguns dos testes bem-sucedidos com células-tronco adultas no Brasil, empregadas experimentalmente contra problemas cardíacos.
Carvalho critica a decisão da Igreja de trazer a discussão para o campo de questões como o início da vida humana. Para os católicos, como também para alguns grupos evangélicos, o óvulo fecundado tem o mesmo status moral de um bebê ou adulto humano. “A Igreja chama a atenção porque se trata de um ser vivo, portanto, não pode ser eliminado. Como se iniciou o processo que eticamente é reprovável, os que o iniciaram têm também a responsabilidade ética de ajudar a descobrir a solução que seja compatível com o respeito à própria vida humana ali presente”, declarou dom Geraldo Lyrio.
“É lógico que seria uma sandice negar que os embriões são uma vida. É claro que são. Mas o argumento deles é um sofisma. Mantidos congelados do jeito que estão, esses embriões jamais poderão se desenvolver e vão acabar sendo jogados fora de qualquer jeito”, diz Carvalho, lembrando que, de acordo com a Lei de Biossegurança, apenas embriões inviáveis ou congelados há mais de três anos poderiam ser usados, e somente com o consentimento dos pais. “Se aceitamos a definição de inatividade cerebral para retirar um órgão e doá-lo, não há por que não aceitar o uso de células de embriões que nem têm sistema nervoso”, argumenta.
Pesquisa parada
Em tese, a pesquisa com CTEHs no Brasil poderia ter se intensificado desde março de 2005, após a aprovação da Lei de Biossegurança. Na prática, porém, a insegurança jurídica fez com que a área apenas engatinhasse por aqui. Para se ter uma idéia, nenhuma linhagem de CTEHs — nome dado às populações “imortais” de células, que se multiplicam constantemente e podem ser usadas para estudar a formação de tecidos — foi estabelecida no país desde então.
“A ação de inconstitucionalidade deixou a gente com o pé atrás. Os trabalhos muitas vezes são feitos por alunos de mestrado e doutorado, e ninguém pode correr o risco de ver seu projeto de pesquisa declarado ilegal da noite para o dia”, conta Carvalho.
“Foi uma chateação, um balde de água fria enorme”, diz Lidia Guillo, pesquisadora da Universidade Federal de Goiás cujo grupo foi um dos poucos a receber financiamento para produzir suas próprias linhagens de CTEHs. “Não dá para agüentar um trem desses”, reclama. A pesquisadora conta que chegou a pensar em descongelar embriões obtidos numa clínica de fertilização, mas ela e seus colegas acabaram recuando por medo de perder tempo com um processo complicado e, ainda assim, não poder ir em frente com a pesquisa mais tarde.
Guillo se diz sensível às questões éticas levantadas pela Igreja. “Eu sou católica, tenho formação católica. Não há como não perceber a beleza na formação da vida humana. Como uma enzima consegue se encaixar certinho no lugar dela? Tem de ter uma força impulsionando isso. Mas a Igreja precisa evoluir, porque a sociedade não vai simplesmente deixar de fazer o que ela prega, principalmente quando se trata de curar doenças”, afirma ela.
Curas, mas não milagrosas
A hierarquia católica chegou a criticar a ênfase dada pelos cientistas ao potencial terapêutico das CTEHs. De fato, até agora não foram feitos testes clínicos (ou seja, em pessoas) dessas células, em parte porque é difícil controlar sua diferenciação (transformação) em tecidos específicos. Os cientistas ainda estão aprendendo a “domar” esse potencial. “A Igreja é sensível ao sofrimento de tantas pessoas que desejam a cura, mas não concorda com a manipulação dos sentimentos delas com informações falsificadas”, declarou dom Geraldo Lyrio.
Para Guillo, no entanto, as associações de pacientes de doenças incuráveis que pressionam o governo pela liberação da pesquisa estão conscientes das dificuldades. “Essas pessoas estão muito bem informadas, principalmente por participarem de associações que acompanham os últimos resultados das pesquisas”, afirma. “Muitas delas têm consciência de que as terapias vão beneficiar outras pessoas que não elas, porque infelizmente é um processo demorado.”
“De fato, houve alguns exageros de parte a parte [em relação à aliança entre cientistas e doentes]”, reconhece Carvalho, da UFRJ. “É uma promessa, mas que tem de enfrentar barreiras importantes. Agora, se a proibição continuar, teremos um atraso ainda maior. E o Brasil ficará numa posição de dependência frente a outros países que aprovaram a técnica”, arremata.
Fonte: G1