“Se eu tivesse entrado em choque, paralisado, como aconteceu com muita gente, não teria saído dali. Eu acho que foi Deus que deixou minha cabeça boa para fazer o que eu fiz”, diz Ana Paula da Silva Mota, 30 anos, motorista de um dos super caminhões da Vale que sobreviveu à tragédia em Brumadinho e teve sua fuga registrada pelas câmeras de segurança da empresa.
Ana Paula trabalhava no local há poucos meses – desde junho de 2018 – e conduzia um mega caminhão de cinco metros de altura, carregado com 91 toneladas de minério no dia do incidente. Ela viu a barragem se romper e engolir tudo que estava em seu caminho.
A frieza essencial para sobreviver, atribuída por ela a uma intervenção divina, foi essencial para ajudar um colega – que já havia descarregado sua leva de minério nos vagões do trem que coletava o minério e subia em sentido contrário ao dela – a sobreviver.
“Eu estava de frente para a barragem. Acho que fui uma das primeiras pessoas a ver [a avalanche]. Não dava para acreditar”, conta Ana Paula, que estava a 550 metros do local onde ficava a principal barragem. De acordo com o Corpo de Bombeiros, no momento que a encosta verde de 87 metros de altura, que retinha 11,7 milhões de toneladas de rejeito de minério de ferro, a onda de lama atingiu velocidades de até 80 quilômetros por hora, e em alguns pontos, 20 metros de altura.
“A onda veio muito rápido. Mas também parecia que estava em câmera lenta. É algo muito estranho, não consigo explicar”, relembra Ana Paula, mãe de uma menina de 8 anos e um menino de 3 anos, em depoimento dado à repórter Amanda Rossi, da BBC Brasil.
De frente para o risco da morte ao volante do mega caminhão chamado Fora de Estrada 777, Ana Paula não entendeu o que estava acontecendo num primeiro momento: “Achei que era uma detonação na mina”, diz. Instantes depois, compreendeu do que se tratava: a barragem havia estourado. “A gente achava que essa barragem estava seca. Olhando de cima, parecia um campo de futebol, firme, duro, não tinha esse lamaçal. Ninguém imaginava que estava assim por dentro”, conta.
“Eu nunca tive receio dessa barragem, porque a Vale sempre passava muito treinamento de segurança. Inclusive, uns três meses antes, tinham feito uma simulação [de evacuação de emergência]”, revelou.
A essa altura, o agir de Deus trouxe a ela um mínimo de frieza para ajudar a salvar quantas vidas pudesse: “Quando caiu a ficha, peguei o rádio transmissor [do mega caminhão] e comecei a gritar desesperada ‘Corre, foge, a barragem estourou’. Quem estava naquela faixa [de rádio] me escutou gritando. Depois, fiquei sabendo que teve gente que escapou porque ouviu uma mulher chorar e gritar no rádio. Era eu”, diz, antes de acrescentar que ainda tentou chamar a central pelo rádio, mas escutou apenas um silêncio, já que o local havia sido um dos primeiros a ser soterrado.
Se no momento do rompimento, Ana Paula estava a 550 metros da barragem, 30 segundos depois a onda de lama estava a apenas 100 metros de seu mega caminhão, inundando o começo da estrada. Ela viu pessoas que tentavam escapar serem encobertas: “Minha vontade era me jogar naquela lama para ajudar a salvar as pessoas, mas não tinha jeito. A onda era muito mais forte que qualquer um de nós”, fala ela.
No ponto em que estava, se a lama tivesse continuado em linha reta poderia ter encoberto a estrada onde Ana Paula estava. No entanto, a onda fez uma curva exatamente na encosta onde ficava a via e se deslocou rumo a outra direção, onde ficava o terminal de carregamento. Ela viu, impotente, a avalanche desviar e correr pelo seu lado direito, destruindo tudo que havia pela frente.
“Hoje, eu não posso mais olhar para uma montanha. Senão, eu vejo a onda vindo outra vez”, desabafa, pontuando que uma tia sua, chamada Rosário, que também trabalhava na Vale, está desaparecida.
Quando viu a lama correndo em sua direção, Ana Paula focou o olhar em outro mega caminhão que começava a subir a estrada, vazio, pois havia acabado de descarregar. O motorista, que dirigia de costas para a barragem usando um protetor auricular para reduzir o ruído do veículo, estava alheio à tragédia em curso. O barulho do mega caminhão e o equipamento de proteção dos ouvidos impediram que ele ouvisse o som das árvores e construções sendo engolidas pela lama.
A frieza provida a Ana Paula por Deus, mais uma vez, ajudou a salvar uma vítima certa: “Eu buzinei e dei luz, desesperada, para avisar meu colega. Ele não ouviu minha buzina, mas acabou percebendo o sinal de luz e acelerou para subir a estrada”, conta.
Para permitir que o colega se salvasse, Ana Paula precisou encostar seu caminhão para que o colega passasse, pois a estrada, estreita, não comportava os dois ao mesmo tempo. Enquanto isso, via a lama encobrindo tudo. “Se não fosse isso, a onda tinha quebrado em cima dele. Foi por muito pouco”, conta a motorista.
Segundo noticiado pelo portal G1, após passar por Ana Paula, esse segundo mega caminhão subiu por uma estrada lateral. Esse momento, ocorrido às 12h29, apenas um minuto depois do rompimento, foi registrado por uma câmera de segurança da Vale. A imagem do veículo em fuga foi exibida pelas emissoras de TV em seus telejornais.
Ana Paula diz que no momento que assistiu a cena, relembrou de tudo que viveu e quase desmaiou. “Fiquei com tontura, meu corpo ficou bambinho”.
O pesadelo ainda não havia acabado para Ana Paula, que agora precisava sair dali, e contava com um complicador: da mesma forma que a estradinha não comportava dois mega caminhões lado a lado, não oferecia espaço para uma manobra. Assim, a motorista precisou fugir de ré, com 91 toneladas de minério na caçamba.
“Então, eu pensei: vou dar ré”, lembra ela. “Só que era uma subida e o caminhão estava cheio de minério. Eu achava que não ia subir de ré, mas era minha única opção. Então, fui dando ré e pedindo a Deus para me salvar. Eu dava ré e a lama ia chegando mais perto. Foi Deus que colocou a mão atrás do caminhão e puxou”, detalha a motorista, que percorreu cerca de 150 metros de ré, e o tempo todo vendo à sua frente a destruição causada pelo rompimento da barragem.
Quando chegou ao entroncamento da estrada pela qual seu colega havia subido minutos antes, ela embicou o mega caminhão de frente e dirigiu para longe dali. A mesma câmera que já havia flagrado o rompimento da barragem e a fuga do colega que foi alertado por ela, filmou sua passagem às 12h31, três minutos depois que a onda surgiu e deixou um rastro de destruição. A cena, com o veículo emergindo da poeira, lentamente, não deixa dúvidas de que um milagre salvou a vida da motorista.
“Se eu tivesse entrado em choque, paralisado, como aconteceu com muita gente, não teria saído dali. Eu acho que foi Deus que deixou minha cabeça boa para fazer o que eu fiz”, acredita Ana Paula, que só pensava em abraçar os filhos enquanto deixava a onda de lama e a nuvem de poeira para trás. “Meu psicológico está abalado, mas tenho que ter força pelos meus filhos […] Qualquer um que se salvou é um milagre”.
Outro milagre
Walcir Carvalho, também aos 30 anos de idade, trabalha para uma empresa terceirizada que prestava serviços elétricos na mina Córrego do Feijão. Quando a barragem se rompeu, ele e oito colegas haviam acabado de almoçar no refeitório da empresa, e como de costume, foram descansar em uma área próxima.
No entanto, o evangélico Carvalho e outros dois colegas decidiram tirar um cochilo nos veículos da empresa, que estavam estacionados em fila indiana sob a sombra de árvores. Quando chegou ao local, o eletricista sentiu-se incomodado e não conseguiu pegar no sono, e por isso, decidiu sair da caminhonete e foi se deitar na carroceria do veículo da frente.
Minutos depois, ouviu um forte ruído: “Achei que era uma explosão da mina. Mas então começou a vir poeira com lama, as árvores começaram a quebrar. Quando olhei, a onda já estava chegando na caminhonete. Aí foi cada um correndo por si”, conta Carvalho.
“Nunca imaginamos que isso ia acontecer. A Vale tem um trabalho 100% em termos de segurança. E eu já trabalhei perto da barragem, parecia que era [sólida, feita de] terra. Nunca ficava água lá. Se enchia de água, uma bomba logo tirava”, diz o eletricista, que foi pego de surpresa pela lama.
Carvalho diz que não ouviu as sirenes de segurança soarem: ”Quem estava em um lugar mais aberto conseguiu ouvir pessoas gritarem [e pode fugir antes]. Já a gente, que estava embaixo das árvores, só ouviu a onda chegando mesmo”, conta, acrescentando que alguns ouviram uma mulher (a motorista Ana Paula) gritar e chorar no rádio.
“Éramos umas 50 pessoas. Ficamos desesperados, procurando se nossos amigos também tinham conseguido fugir”, diz. Seus dois colegas que também estavam cochilando nas caminhonetes não apareceram, e ao longo das buscas, um deles teve o corpo identificado.
O eletricista não faz voltas ao dizer que tem convicção que foi salvo por um milagre, já que dos três veículos da empresa de serviços elétricos, dois ficaram soterrados. O terceiro, mesmo torcido pela lama, não afundou: ”Era a caminhonete onde estava minha Bíblia. Graças a Deus eu consegui fugir. Muitas pessoas que faleceram ficaram paralisadas, sem reação, hipnotizadas pelo que estavam vendo e não conseguiram escapar”, finaliza Carvalho.