Pouco mais que duas dezenas de paroquianos chegam e se ajeitam nos bancos, enquanto o Arquibispo Franzo Wayne toca a sua trompa num tranqüilo solo de boas vindas antes do bombástico “batismo sonoro”, termo que King criou para descrever a experiência religiosa que ele e sua esposa tiveram num show do saxofonista norte-americano John William Coltrane em 1965, que o levou à fundação da igreja.
O pequeno espaço se enche com o cheiro almiscarado de incenso enquanto a esposa de King, Rever. Mother Marina King e as Irmãs da Compaixão, começam com sua oração de abertura: “Limpe-nos, ó Senhor, nos mantenha imaculados para que estejamos entre os abençoados”. Os paroquianos – alguns de dreadlocks, outros vestindo roupas de domingo, alguns negros, outros brancos – cantam juntos, batem palmas e balançam a cabeça em oração.
Por décadas a igreja manteve crescimento constante, e já apareceu em reportagens do New York Times, da revista Life e da BBC. Dez anos atrás era normal para um transeunte se deparar com pessoas se apertando até do lado de fora da famosa fachada da igreja. Hoje, é mais fácil achar bancos vazios entre os membros da congregação dançando.
Para piorar as coisas, no começo deste ano um dos principais patrocinadores, o New College of California, foi à falência, deixando a igreja sem uma importante fonte de verbas. A escola pagava dois terços do aluguel da igreja, e agora King e seu séqüito voltam a pedir ajuda para os seus membros e para a comunidade local.
Fundação
King fundou a igreja em 1971, cinco anos depois da morte de Coltrane por câncer no fígado. Como “Templo de Mente Única Evolucionária Transacional do Corpo de Cristo”, a igreja musical foi inspirada na vida e obra de Coltrane, especialmente no seu clássico de 1964, uma não-religiosa meditação sobre a fé, “A love supreme”.
Saxofonista tenor e soprano, Coltrane tocava num delicado equilíbrio entre um barulhento abandono e um controle suave que até hoje inspira um culto devotado.
King, filho de um pastor pentecostal, disse que sua primeira audição do trabalho de Coltrane foi como uma experiência religiosa: “Meu irmão trouxe o disco para casa, e eu fiquei pensando ‘Nossa! O que é isso?'”.
King, também saxofonista, recebeu um chamado. A música, a luta de Coltrane contra o vício e sua subseqüente busca por força espiritual pela música foram as fundações sobre as quais King construiu sua igreja.
“Nós não queríamos liberdade de religião – nós queríamos liberdade DA religião”, lembrou King, postado à frente de uma pintura do seu santo protetor.
A igreja de Coltrane usa elementos do cristianismo tradicional em seus cultos. Entre improvisações instrumentais, as Irmãs cantam o “Pai nosso” e fazem leituras de epístolas e do evangelho.
Igreja Ortodoxa Africana
Em 1982, a congregação de King entrou para a Igreja Ortodoxa Africana, uma seita cristã que se formou na década de 20 como um lugar para episcopais afro-americanos que queria uma igreja em separado. Apesar de não ser santo na Igreja Católica, Coltrane foi beatificado pela Igreja Ortodoxa Africana depois que o grupo de King juntou-se à ela.
A igreja fica no coração do bairro Western Addition – que já foi uma região cheia de clubes de jazz antes da maior parte dos edifícios serem demolidos sob o pretexto de uma revitalização urbana nos anos 60. A cidade criou recentemente um “distrito de preservação do jazz” na rua Fillmore, para honrar a história que foi destruída no momento de renovação da cidade, e a igreja de Coltrane é uma parte importante disso.
Esta não é a primeira vez que a igreja passa por tempos difíceis. Assim como a abordagem da fé através da música tem recebido grande atenção da mídia, as notícias sobre o declínio da igreja também andam bem freqüentes na última década.
A música quase morreu em 2000, quando a igreja foi despejada da sua sede original, no bairro de Western Addition, vítima do aumento dos aluguéis na região após o boom de empresas de tecnologia na área.
“Deus nos permitiu sobreviver e continuar servindo a comunidade”, disse King. “Mas para a igreja continuar para além desta geração, não podemos deixar os futuros membros apenas com uma salinha alugada”.
Aluguel
Os problemas voltaram a aparecer recentemente quando a igreja perdeu o patrocínio do agora extinto New College of California. Logo após de receber a má notícia, o proprietário do imóvel onde funciona a igreja ameaçou aumentar o valor do aluguel. King conseguiu uma solução temporária e negociou um contrato novo de três anos com o mesmo valor de aluguel.
Mas a igreja não substituiu o patrocínio perdido. King pediu doações dos membros da igreja, mas sabe da necessidade de um benfeitor maior que ajude a pagar as contas. E isso ainda não aconteceu.
A longo prazo, King imagina que a única esperança para a sobrevivência é levar a igreja para além de seus domínios. King espera que sua filha, a baixista e diácona Wanika King-Stephens, que foi ordenada padre neste ano pela Igreja Ortodoxa Africana, possa ajuda-lo a atrair jovens e mulheres da comunidade a se envolver na igreja.
“Eu acho que, como igreja, nós temos que enxergar nós mesmos como vanguarda, como nosso patriarca fundados, que estava lidando com o racismo e as limitações contra as pessoas de cor”, contou King. “Bem, ainda existem limitações na igreja na questão das mulheres”.
Outra maneira com que King espera atrair mais pessoas para a igreja e para a música de Coltrane é a criação de um festival musica anual de Coltrane, que a cada ano seria realizado em uma nova cidade, numa celebração da espiritualidade e da música do fundador da igreja.
Levando em consideração todos os esforços, aos domingos, quando a música começa, parece que todos os problemas desaparecem enquanto a banda toca, suando e se entregando ao som.
Os membros da igreja Toes Tiranoff (57) e suas esposa Megan Haungs (56), sentam-se na primeira fila, usando sapatos de sapateado preto-e-brancos.
Enquanto a banda toca, Tiranoff sobe numa pequena plataforma de madeira ao lado de sua cadeira e dança, enquanto Haungs toca um tamborim. Tiranoff e Haungs, que vivem entre São Francisco e Nova York, onde eles freqüentam o ministério do jazz da Saint Peter’s Churh, onde a música também é uma parte central da liturgia.
“Existe toda uma espiritualidade do jazz que você sente mesmo quando está apenas ouvindo música”, diz Tiranoff. “Para mim, faz muito sentido de que o jazz entre nas igrejas”.
Fonte: G1