Jovens pobres contam estar encontrando conforto espiritual e saída para discriminação e abandono social
“São 15h45. Está na hora da oração da tarde”, avisa Honeré Al-Amin Oadq, de 31 anos, interrompendo a entrevista. Negro, magro, fala mansa, ele se levanta, pede licença e vai apressado ao banheiro. Lava as mãos, em seguida a boca, barba e orelha, umedece os cabelos e entra no amplo salão central de uma mesquita em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. Ajoelhado, ora por cerca de cinco minutos. O ritual é repetido cinco vezes por dia.
Honeré nasceu pobre, na periferia de Diadema. Na adolescência, entrou para o movimento negro e integrou um grupo de rap até se converter ao Islã. Atualmente, dedica-se a anunciar a fé nas palavras do profeta Maomé no Centro de Divulgação do Islã para a América Latina (Cdial). “Hoje, não canto mais, mas muitos jovens usam os meios que têm, a sua arte, para divulgar o Islã. Já vi vários entrando numa mesquita para conhecer o islamismo apenas por ter ouvido falar em um show, uma letra de música.”
A conversão de jovens da periferia de São Paulo ainda não tem as mesmas dimensões das observadas nos guetos das grandes cidades dos Estados Unidos ou da França – onde 1,6 mil pessoas se convertem em média à religião por ano. Mas já foi parar até num informe sobre a liberdade religiosa no Brasil, feito pela Embaixada dos Estados Unidos: “As conversões ao islamismo aumentaram recentemente entre os cidadãos não árabes. Há cerca de 52 (sic) mesquitas, centros religiosos islâmicos e associações islâmicas.”
O islamismo é a religião que mais cresce no mundo atualmente – e no Brasil não é diferente. O problema é quantificar o fenômeno. O Vaticano anunciou na semana retrasada que, pela primeira vez na história, o número de muçulmanos ultrapassou o de católicos no mundo. Islâmicos somam 1,3 bilhão de seguidores ante 1,13 bi de católicos. O crescimento se deve basicamente às taxas de natalidade, mais altas em países islâmicos. No Brasil, há mais de 27 mil seguidores de Alá, segundo o Censo de 2000. Mas líderes religiosos acreditam que o número de fiéis é subestimado no País. “O dado oficial que temos é o do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mas é difícil calcular o número de muçulmanos convertidos, uma vez que a conversão ao Islã é muito pouco formalizada, e as comunidades muçulmanas apresentam, em geral, baixo nível de organização”, afirma o xeque Armando Hussein, ex-presidente religioso da Mesquita Brasil, a mais tradicional de São Paulo.
A Embaixada americana confirma a dificuldade de estabelecer o número de seguidores islâmicos no Brasil. “Não existem dados confiáveis sobre o número de muçulmanos. Seus líderes estimam que haja entre 700 mil e 3 milhões de muçulmanos, com o número menor representando os que praticam a religião ativamente e o maior incluindo também os membros nominais. Há comunidades muçulmanas significativas em São Paulo, no ABC e na área de Santos. Também há comunidades no Estado do Paraná, distribuídas na região litorânea, em Curitiba e em Foz do Iguaçu, na região da Tríplice Fronteira.” A fronteira de Brasil, Paraguai e Argentina já foi apontada como possível lugar de refúgio de extremistas islâmicos, mas nada foi provado.
Independentemente dos números, é fato que a religião tem ajudado jovens a encontrar conforto espiritual e saída para discriminação e abandono social que enfrentam na periferia. “A história do Honeré é a de todos nós”, afirma o rapper e escritor Sharif Shabazz, que usa as palavras para denunciar a desigualdade social. Shabazz nasceu Ridson, filho de um baiano. Costumava ouvir piadas racistas do pai, mas nunca viu graça. O estranhamento transformou-se em revolta quando ouviu que o irmão mais novo evitava tomar café e comer feijão na tentativa de ficar “branco”. O rapaz militou no movimento negro, tornou-se rapper, escritor da periferia e adotou nome de Dugueto, que tatuou na pele para mostrar sua origem pobre.
Mais tarde, descobriu o Islã. Nos textos e músicas, Shabazz não fala diretamente sobre religião. “Mas está lá, de forma indireta. Eu vivo o islamismo. Para mim, não é uma religião, é um código de vida”, afirma ele, que mora em Taboão da Serra, na região metropolitana de São Paulo. As letras não precisam falar de religião. Muitas tocam na questão racial e no abismo social do País. Muitas vezes isso basta para conquistar uma alma. “O profeta Maomé pregava o Islã para as pessoas de diversos povos e culturas para que a religião fosse apresentada na linguagem típica de cada nação, com exemplos locais. E vemos no exemplo desses jovens um esforço necessário para trazer nossa religião às periferias das grandes cidades”, afirma Honeré sobre a música feita por grupos como o Denigri, formado por quatro muçulmanos, entre eles Shabazz.
MULHERES
A maioria dos convertidos é formada por homens. As mulheres adotam o Islã após se casarem com muçulmanos. Mas há mulheres que chegaram a uma mesquita levadas apenas pela consciência. Quem visita o Cdial não deixa de perceber a recepcionista Rosângela Tadeu França, de 46 anos, uma “negona de respeito”, como ela se define, brincando. Filha de pai pugilista, morava no Jabaquara, zona sul, a um quarteirão da Igreja São Judas Tadeu, santo da qual herdou o nome. Ia todo domingo às missas, mas saía com dúvidas. Chegou a visitar igrejas evangélicas, e as dúvidas cresceram. Um dia, há 20 anos, passou por uma mesquita. Era hora do chamado para a oração da tarde.
“Não entendi uma palavra de árabe. Mas sabia que era aquilo que eu queria”, diz ela, que mora em São Bernardo. “Não procurei a mesquita porque tinha um problema. Estava bem. Tinha meu neguinho lindo (o filho Danilo, hoje com 26 anos) e um bom emprego.”
Ao entrar, viu um senhor tentando avisá-la para cobrir os cabelos, como manda a religião. “Eu nem sabia dessa história de lenço, mas estava disposta a entrar e pedi alguma coisa para cobrir a cabeça e o dorso”, lembra. Só encontraram uma saia. Rosângela não viu problema. “Foi de saia mesmo. Mas ninguém notou. Sabe como é? Eu sou fina. Dobrei a saia, dei um jeito, e ficou chique”, diz, divertindo-se com a lembrança. A partir daquele dia, tornou-se muçulmana, ajudou a reverter – como islâmicos chamam a conversão à religião – o marido e o filho, largou o emprego numa indústria química e passou a trabalhar para divulgar o Islã. Rosângela decidiu procurar a Mesquita de São Bernardo após conhecer a história da Revolta dos Malês. “É muito bonita. Um bando de escravos que não se curvavam a nada, a não ser a seu Deus”, conta.
Fonte: O Estado de São Paulo