O shofar, instrumento de sopro criado com o chifre de um animal, é um dos ícones da religião judaica, mas curiosamente só entrou na liturgia depois da diáspora, impulsionado pela iconografia cristã.
“A palavra shofar aparece 72 vezes no Antigo Testamento bíblico, mas sempre em contextos como batalhas, coroações, ocasiões especiais e desastres”, disse à Agência Efe Phillip Vukosavovic, curador de uma mostra sobre o instrumento, exposta no Museu dos Povos da Bíblia até fevereiro. “Mas em uma única ocasião é possível atribuir à peça uma conotação religiosa: no ano do Jubileu (Yovel, a cada 50 anos)”, acrescenta.
Nas traduções da Bíblia hebraica, o shofar é normalmente citado como uma “trombeta”, apesar de estar longe de ser ou sequer parecer com uma, além de ser muito anterior.
Instrumento milenar, o chifre era comum no campo de batalha dos povos do Alto Mediterrâneo e Mesopotâmia, mas só o povo judeu manteve seu uso de maneira ininterrupta.
“Shofar” é na realidade o nome que os hebreus davam para o chifre animal, cuja massa óssea pudesse ser extraída facilmente de sua camada queratinosa. Segundo uma das responsáveis pela mostra, Noa Kremer, a exposição aborda dois aspectos, sendo um deles a origem histórica do chifre ritual e seu processo de produção. Ao contrário das crenças, esse chifre não deve ser de um animal puro, o “kosher”, obedecendo às leis judaicas, mas sim de um tipo específico de chifre oco.
Existem mais de 100 animais que podem prover esse tipo de chifre, de maneira que cada povo pode extraí-lo das espécies mais comuns em sua região. Os judeus marroquinos, por exemplo, os encontram nos carneiros, já os iemenitas, nos antílopes africanos.
“O segundo aspecto da mostra é o caráter histórico, ou seja, o shofar como testemunha da história e de todos os eventos importantes para o povo judeu, alegres e tristes”, explicou Noa.
Hoje, o chifre ritualístico pode ser encontrado facilmente em lojas de souvenir do moderno Estado de Israel, sendo utilizado em momentos importantes do país, como na eleição de um novo presidente, mas nem sempre foi assim. Historicamente, o uso do shofar era restrito às sinagogas apenas nos dois dias mais sagrados do calendário judeu: o Ano Novo (Rosh Hashaná) e o Dia do Perdão (Yom Kipur).
A Bíblia se refere às datas como “Yom Truá”, mas em suas meticulosas descrições não falam em nenhum momento sobre instrumentos como o shofar.
“Tratava-se de um instrumento utilizado principalmente para eventos seculares, se transformou em utensílio religioso apenas com o início da diáspora (quando os romanos expulsaram os judeus durante o século I d.C)”, explicou a historiadora, que atribui o seu novo uso ao desenvolvimento do cristianismo como religião no Império Romano.
“Assim como o cristianismo se apropriou de símbolos pagãos para se estabelecer como religião, o judaísmo fez o mesmo”, comentou ao apontar para duas velas da exposição, tendo uma delas uma cruz e a outra um shofar.
O resto foi obra dos exegetas e rabinos que compilaram e analisaram o Talmude (conjunto de códigos de ética rabínica) nos séculos seguintes à destruição do Templo de Jerusalém (70 d.C.), que concederam ao instrumento seu atual uso religioso nas sinagogas nessas duas jornadas sagradas.
Apenas em 1948, com a criação do Estado de Israel, o shofar voltou a recuperar, em parte, seu uso em cerimônias de estado, uma prática quase regularizada desde que em 1967 o então rabino militar Shlomo Goren o tocou em frente ao Muro das Lamentações, no fim da Guerra dos Seis Dias.
Nem todos os shofares são próprios para o uso religioso, porque as exigências para este fim são mais rigorosas e os artesãos responsáveis por sua produção se inspiram em detalhistas tradições centenárias que não revelaram nem aos especialistas do museu.
Fonte: Terra