Discursos de palanque com conteúdo religioso, candidatos fazendo profissão de fé, visitas a igrejas, resposta na ponta da língua sobre assuntos morais e, acima de tudo, nenhum deslize pecaminoso em sua biografia. Assim são as campanhas norte-americanas nas últimas três décadas. E assim ficou a corrida presidencial brasileira em 2010. Se o brasileiro se espantava com esses ingredientes da democracia dos EUA, agora assiste em seu território ao mesmo fenômeno.
A petista Dilma Rousseff teve de se explicar várias vezes sobre sua opinião sobre o aborto, fez diversas reuniões com líderes religiosos e até uma carta de compromisso firmou para se livrar da suspeita que, se eleita, irá propor mudanças nas leis de direitos humanos. O tucano José Serra peregrinou por igrejas, leu a Bíblia no horário eleitoral e contou até com um santinho com citação bíblica: “Jesus é a verdade e a justiça.”
Ambos convocaram pastores para anunciarem seus apoios, visitaram a basílica de Aparecida e anunciaram ter “a fé cristã”.
O assunto tomou força uma semana antes do primeiro turno da eleição. Por um lado, o debate de presidenciáveis promovido pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), foi pautado por esses temas – nele, Serra declarou que achavam bom o presidente brasileiro acreditar em Deus.
Por outro, nos meios evangélicos começaram a circular vídeos com pastores criticando o PT e sua candidata, e apontando que eles eram a favor do casamento entre homossexuais e do aborto. Vídeos como os de Silas Malafaia e Paschoal Piragini Júnior foram acessados por milhões de internautas e ainda foram exibidos em igrejas.
Anteriormente, o tema tinha se limitado a uma carta intitulada “Apelo a Todos os Brasileiros e Brasileiras”, divulgada em agosto pela Regional Sul 1 da CNBB e que pedia para não se votar em candidatos do PT por ser a favor da “descriminalização do aborto”. Quando o tema ganhou as manchetes, os bispos católicos se negaram responder porque a discussão era “eleitoreira”.
Pesquisa do Datafolha apontou que 25% dos eleitores que desistiram de votar em Dilma no dia 3 de outubro apontaram razões religiosas – o restante justificou a mudança por denúncias e escândalos sobre o governo.
A queda entre os evangélicos perdurou no segundo turno: é o único segmento religioso em que José Serra vence segundo o instituto de pesquisa (na linha evangélica não pentecostal, o tucano lidera por 50% sobre 40% de sua rival). A petista vence entre católicos, espíritas e os que não têm religião.
A mudança repentina é explicada em parte porque o público majoritário das igrejas evangélicas tem o mesmo perfil dos eleitorais que mais tardam a definir seu voto: as mulheres de baixa renda. Em geral, o único espaço público de debate frequentado por essa parte do eleitorado é o templo, por isso a palavra do pastor ganha mais força do que a dos padres e bispos entre os fiéis católicos.
DOIS RIVAIS E UM SÓ PEDIDO
Prova da força do voto evangélico foi o aumento de sua bancada: cresceu 47% em 2010, somando 63 deputados e três senadores – mesmo número de parlamentares que o PSDB conseguiu eleger. Os números mostraram que a bancada evangélica reverteu o desfalque sofrido nas eleições de quatro anos atrás por envolvimento de integrantes em escândalos como o mensalão, o que interrompeu um crescimento iniciado nos anos 80.
O Plano Nacional de Direitos Humanos, lançado pelo governo Lula no final do ano passado, é o principal alvo da bancada. Na “Carta de Brasília”, divulgada pela bancada, os líderes evangélicos se insurgiram contra o apoio do plano, em sua versão original, à descriminalização do aborto e à união civil de pessoas do mesmo sexo.
Com essa guinada no final de setembro, um dos fatores que determinou a existência do segundo turno, fez a campanha recomeçar em tom moral. Em sua primeira frase, Dilma disse: “Quero começar este segundo turno agradecendo a Deus por me ter concedido uma dupla graça”. Serra, na imagem que abriu seu programa, apareceu discursando sobre a sua ida ao segundo turno e rogou: “Com Deus, vamos à vitória”.
Em entrevistas e discursos, ambos repetiam expressões-chaves como “a família brasileira” (em referência ao casamento gay), “respeito à vida” (leia-se “contra o aborto”) e liberdade de religião (“não criminalizar os religiosos contrários à homossexualidade”).
Os críticos logo acharam rótulos como “inquisição”, “Idade Média”, “puritanismo”, “guerra santa” e “cruzada eleitoral” para tentar explicar o clima em que a corrida presidencial entrou.
Cá como lá
Nos EUA, foi-se o tempo em que o presidente John Kennedy nadava com beldades durante sua gestão e isso não tinha repercussão pública. Hoje, a pauta política do país é o Tea Party, o setor ultraconservador do Partido Republicano que surgiu como reação à subida de Barack Obama ao poder em 2008.
Nas últimas décadas, os americanos passaram a esperar de seus presidentes um comportamento privado mais condizente com a imagem de família feliz que eles obrigatoriamente apresentam. O caso Gary Hart foi um marco. Mulherengo, ele disputava a candidatura presidencial pelo Partido Democrata em 1988 quando desafiou a imprensa a comprovar algum deslize: foi flagrado com uma namorada sentada em seu colo durante um animado passeio de barco. Renunciou à carreira política.
O conservadorismo dos EUA encontrou outro prato cheio no caso extraconjugal de Bill Clinton com a estagiária Monica Lewinsky que gerou um processo de impeachment para o mandatário.
Seu sucessor, George W. Bush, teve como público cativo a população do Sul e do Meio-Oeste dos EUA, região que foi apelidada como a “Jesusland” pelo forte apelo religioso e moral em suas escolhas eleitorais. Bush é um “Born again” (renascido) na igreja metodista.
Já Barack Obama, tachado de “infiel”, se apresentou como membro da Trinity United Church of Christ, de teologia luterana, convertido já adulto para angariar a simpatia de parte do eleitorado.
Por sua família muçulmana, Obama enfrentou boatos de que seria também um muçulmano, religião que muitos americanos associam negativamente ao extremismo. Os boatos foram reforçados com a divulgação de uma foto na qual Obama aparece com trajes típicos em visita ao Quênia, onde sua família paterna mora.
Nessa reta final, Serra e Dilma enfatizaram na formação católica na infância e no colégio, sem citar que boa parte de suas vidas adultas e políticas não estavam relacionadas com a religião.
Eles também exibiram imagens de suas recentes predileções espirituais. Dilma exibiu foto de encontro com o papa Bento 16 e se declarou devota de Nossa Senhora Aparecida em sua primeira visita à basílica. Já Serra teve de ouvir discurso revoltado de padre contra o tumulto que o tucano provocou na igreja de Canindé (Ceará), mas, por outro lado, foi bem recebido em suas incursões entre bispos católicos e líderes da Assembleia de Deus. O tucano acabou sua campanha dizendo que foi “Davi contra Golias”.
Fonte: UOL / Gospel+