O site A Capa estreia nesta quinta-feira (07/05) sua mais nova coluna, que abordará temas ligados à religião. Para escrevê-la, convidamos o teólogo e historiador Márcio Retamero, 35, mestre em História Moderna pela Universidade Federal Fluminense e pastor da Comunidade Betel do Rio de Janeiro.
Desde 2006, a Comunidade Betel se auto-intitula uma Igreja Protestante Reformada e Inclusiva, que milita pela inclusão de LGBT na Igreja Cristã. Além de exercer papel fundamental na luta pela aceitação de homossexuais na Igreja, a Betel celebra o que chama de Rito de Casamento entre pessoas do mesmo sexo, isto é, uma cerimônia onde casais gays recebem a bênção matrimonial.
Nesta entrevista, Márcio Retamero explica sobre a ideia da coluna e levanta algumas polêmicas, entre elas a posição da Igreja Católica de condenar a homossexualidade. Também diz que a perseguição contra LGBT é fundamentada principalmente na interpretação equivocada da Bíblia. Confira a seguir.
Como é a sua atuação na Betel do Rio?
Sou o Presbítero Docente ou Pastor da Comunidade Betel do Rio de Janeiro. Minha atuação exige presença constante em todas as reuniões públicas e privadas. Também é meu papel conduzir a Comunidade Betel do Rio de Janeiro, para como Igreja Inclusiva ocupar espaço social relevante, não apenas no âmbito da ação social, como outras igrejas, mas também no âmbito político junto à militância LGBT. Eu e outros eclesianos participamos ativamente das últimas Conferências LGBT nos níveis municipal, estadual (inclusive fora do estado do Rio de Janeiro) e nacional. Promovemos palestras sobre religião e homossexualidade junto às entidades de direitos humanos e LGBT; participamos das paradas do Orgulho que acontecem no Grande Rio; redigimos manifestos todas as vezes que algum político ou pastor fundamentalista toma posição contra os LGBTs.
Acredita que a Igreja pode contribuir e fomentar essas questões?
Não creio numa Igreja apática, desencarnada da realidade social, sem voz e sem vez; não creio e não participaria de uma Igreja que só se preocupa com as “coisas do alto”; creio, como Reformado Protestante, que a Igreja é a consciência do Estado, é seu caráter profético. A Igreja como profeta tem que denunciar abusos, usurpações, desmandos e todas as mazelas sociais. Tem que se posicionar ao lado dos excluídos e marginalizados. Defendemos o Estado Laico, aliás, bandeira histórica dos protestantes em todo o mundo. É nosso dever lutar contra o casamento perverso da religião com o Estado. Esta é minha atuação.
Como sua Igreja encara a homossexualidade?
Como algo natural. Homossexualidade não é doença física ou psíquica. Homossexualidade não é contagiosa. Homossexualidade é orientação sexual como heterossexualidade é uma orientação sexual. Como teístas, acreditamos que a orientação sexual faz parte da diversidade da criação de Deus e tudo o que Deus criou. Neste sentido, homossexualidade é bênção de Deus e não maldição. Os que usam as Escrituras para condenarem a homossexualidade nada sabem sobre a Bíblia. A leitura deles é uma leitura literalista, mas seletiva. Além disso, outro problema grave são as traduções modernas que não são fiéis aos textos mais antigos como a Bíblia Nova Versão Internacional, dentre outras. Eles usam desonestamente termos criados no século XIX como “sodomitas” ou modernos como “homossexuais” para traduzirem erroneamente termos gregos como arsenokoitai e malakós, que longe estão da noção de homossexualidade como nós a entendemos nos dias de hoje. Não existe tradução bíblica não ideológica. Para mudarmos o quadro de exclusão de homossexuais nas comunidades de fé cristã, é preciso o combate às traduções ideológicas das Escrituras.
O que pretende com sua coluna aqui no site A Capa? Que assuntos pretende desenvolver?
Pretendo falar sobre religião de maneira plural e democrática, não apenas pelo viés cristão. Também pretendo identificar posturas homofóbicas em religiões não cristãs e debater o assunto com as lideranças dessas religiões, informando o leitor crítico do site a respeito deste assunto tão importante e relevante. Pretendo desmascarar a leitura fundamentalista e literalista seletiva das Escrituras e contribuir para a emancipação política progressiva dos LGBTs do Brasil. Já que os fundamentalistas usam a Bíblia para não conceder direitos aos LGBTs, vamos combatê-los no mesmo terreno. Espero uma grande participação dos leitores do A Capa.
Você acredita que a Igreja, não importando sua denominação, e a comunidade LGBT podem se unir na luta contra o preconceito?
Sim, eu creio e luto para que isso seja realidade no Brasil. Estamos avançando muito neste aspecto junto às igrejas mais abertas à causa da inclusão LGBT na comunidade de fé cristã. Infelizmente, a Igreja, no século IV, quando se posicionou ao lado do poder político no Império Romano, esqueceu seu passado de opressão, e de perseguida passou a ser perseguidora. Quando aconteceu a Reforma, os protestantes durante séculos experimentaram a exclusão, o preconceito, a marginalização, até mesmo a morte nas fogueiras da Inquisição. No Brasil, os protestantes lutaram muito contra a exclusão e a marginalização. Em muitas cidades eram apedrejados, surrados, amarrados em árvores e torturados. Igrejas foram queimadas como a Primeira Igreja Batista de Niterói. É preciso lembrá-los deste passado de luta contra o preconceito para que na atualidade eles se posicionem ao lado dos excluídos e marginalizados de hoje. Devem aprender com a História.
Especificamente sobre a Igreja Católica, o que você pensa sobre os discursos homofóbicos do papa?
Penso que é uma desgraça! Penso que toda vez que o papa fala de maneira negativa da homossexualidade, contribui e se torna cúmplice das perseguições, das torturas, dos assassinatos de gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais no mundo inteiro. Contribui para uma cultura homofóbica, sexista, heteronormativa, que exclui, que mata os que não se enquadram. Contudo, precisamos entender que o ditado popular “Roma locuta, causa finita”, não se aplica mais à atual realidade. Por exemplo, a Conferência Episcopal Alemã, similar à CNBB, emitiu parecer favorável à união civil de pessoas do mesmo sexo naquele país. A própria CNBB acabou de manifestar publicamente que os homossexuais podem sim ingressar no sacerdócio, desde que observem como os heterossexuais, o celibato; o documento que veio de Roma, que serve como diretriz regulamentar para os candidatos ao sacerdócio, proibia a aceitação nos seminários de “pessoas com tendências homossexuais profundamente arraigadas” – olha aí a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil não se enquadrando nas ordens de Roma!
E como isso é recebido no Brasil?
Em muitas paróquias Brasil a fora os LGBTs encontram acolhimento, obviamente, isso depende de cada sacerdote, mas conheço vários casos onde tem se praticado a inclusão. Fiquei muito feliz quando uma transexual da Amazônia me disse que era respeitada dentro de sua paróquia e que era atuante! A Igreja Católica Romana não é uma igreja uniforme como eles gostariam que fosse; muitas vozes lá dentro se fazem ouvir a favor da inclusão LGBT.
Como a religião pode se fazer mais presente na vida dos homossexuais?
Pode fazer muito! Estamos vivendo o início de uma era muito diferente da que passou. Iniciativas progressistas e inclusivas estão cada vez mais presentes nas agendas de algumas Igrejas, principalmente das Igrejas Históricas. Por exemplo, no Rio de Janeiro, além da Comunidade Betel, temos o Diversidade Católica, grupo de gays e lésbicas católicos que militam pela inclusão LGBT na Igreja Romana. Em São Paulo, na Paróquia São Luiz Gonzaga, administrada pelos Jesuítas, a missa dominical noturna tem uma grande freqüência LGBT; na mesma cidade existe a Igreja da Comunidade Metropolitana, presente em outras cidades do Brasil, denominação que há 40 anos luta pela inclusão LGBT, e a CCNE, de linha pentecostal, também presente em outras cidades brasileiras. A Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB) também se identifica como uma igreja inclusiva e, embora não pratiquem uma inclusão radical, como os independentes, possui entre seus eclesianos pessoas homossexuais que não sofrem preconceitos nem com exclusões. Outras Igrejas Anglicanas, chamadas de “Igrejas Continuantes” e que são independentes da IEAB, também são inclusivas como a Igreja Anglicana do Brasil (IAB). Em São Paulo, os Adventistas homossexuais já se organizam como uma organização “pára-eclesiástica”, e na internet é forte o grupo das Testemunhas de Jeová Gays, bem como o grupo dos Mórmons. Já temos no Brasil um grupo de Judeus e Judias Gays, atuantes no cenário social. O que quero dizer com essas citações? Que a religião pode se fazer mais presente na vida dos homossexuais se abrindo ao debate reflexivo sobre a diversidade da sexualidade humana, abraçando os LGBTs em suas comunidades locais.
O que você e sua Igreja pensam sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo? E sobre camisinha e aborto?
Em nossa comunidade celebramos o Rito de Casamento entre pessoas do mesmo sexo e de pessoas heterossexuais que não podem celebrar o casamento em outras igrejas que condenam o divórcio e o segundo casamento. No próximo sábado, um casal de homossexuais masculinos receberá a bênção matrimonial; já é significante o número de bênçãos que realizamos em Betel. Pensamos que é direito espiritual inegociável que pessoas do mesmo sexo que se amam e que creem em Cristo Jesus, recebam a bênção. Quanto à camisinha, seu uso é obrigatório no combate à disseminação do vírus HIV e outras DSTs e deve ser encorajado seu uso tanto entre solteiros como entre os casados. Nossa Comunidade é aberta aos pesquisadores do assunto, como a Fiocruz e a ABIA/RJ, que ministram palestras sobre o HIV e distribuem camisinhas. Quanto ao aborto, como método contraceptivo, temos posição contrária; existem outros métodos mais saudáveis para a saúde da mulher. Agora, quando o aborto é praticado porque a gravidez é consequência de um estupro ou quando existe má formação do feto e risco de vida para a gestante, nos posicionamos criticamente a favor. O aborto jamais é praticado sem graves consequências espirituais e psíquicas para quem é cristã. Mas não condenamos quem recorreu ao aborto como última opção. E creio que o assunto é de foro íntimo das mulheres; como homem, não me sinto à vontade para ficar falando sobre isso. Como pastor, tenho que olhar com mansidão, entendimento e misericórdia para todas as mulheres que passaram por essa experiência.
Qual é o futuro da religião no mundo?
Friedrich Schleiermacher [filósofo e teólogo alemão] dizia que religião é sentimento. Enquanto existir a humanidade existirá religião. A Ciência jamais tomará o lugar da religião porque a Ciência, ao contrário do Mito, não explica as tragédias humanas, nem os anseios do espírito humano. Enquanto o ser humano questionar a existência, seus sucessos e fracassos na vida, a religião terá seu lugar na sociedade. E mais: vejo o ateísmo como também vejo a psicanálise como religão, embora de cunho diferente das religiões cristãs e não-cristãs. Até proselitismo fazem! Muitos são apologéticos! A religião, ainda que abra mão de Deus, jamais acabará.
Você acredita que a Igreja poderá ser um dia mais inclusiva, aceitando a todos independente da orientação sexual?
Creio piamente! Trabalho todos os dias e luto para isso. Enquanto um semelhante que é gay, lésbica, travesti, transexual e bissexual tombar sem vida ao chão, seja porque foi assassinado, seja porque atentou contra a própria vida porque era impedido de se auto-conhecer, seja pela família, seja pela Igreja, seja por outros seres humanos que usam da religião e de uma interpretação pervertida das Escrituras Cristãs – eu lutarei e militarei por uma Igreja que seja radicalmente – não parcialmente – inclusiva. O que nós da Igreja Inclusiva estamos fazendo hoje é uma Nova Reforma na Igreja de Cristo e com a ajuda de Deus em primeiro lugar e dos cristãos e cristãs de boa vontade, conseguiremos. É nisto que creio e é pra isso que trabalho.
Fonte: A Capa / Gospel+
Via: Notícias Cristãs