Evangélicos e católicos se unem para evitar aprovação da proposta que torna crime a discriminação contra homossexuais
Considerado o mais conservador dos três poderes, o Legislativo brasileiro nunca dispôs sobre políticas para a população homossexual – cerca de 10% dos 180 milhões de brasileiros, conforme estimativas da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais e Travestis (AGLBT). E, no que depender da queda de braço entre as frentes parlamentares religiosas e a frente em defesa da cidadania GLBT, os projetos de lei sobre o tema não sairão da gaveta tão cedo.
Ao todo, 187 deputados e 28 senadores ligados a grupos religiosos trabalham pela rejeição de uma série de propostas: desde a que legaliza a união civil entre pessoas do mesmo sexo, passando pela que criminaliza a homofobia e a que autoriza os transexuais a mudarem o pré-nome nos documentos civis, até a que estabelece, oficialmente, a data de 28 de junho como Dia Nacional do Orgulho Gay (veja quais são essas propostas).
Para eles, a aprovação de qualquer projeto de lei que trate especificamente de políticas para a população homossexual fará com que um “desajuste” pareça normal. É esse o argumento evocado, por exemplo, pelo presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Família, o bispo evangélico Rodovalho (DEM-DF).
O deputado diz que não defende a discriminação, mas que não admite que o Estado “sacramente” a homossexualidade, vista pela igreja como um “pecado” e um “desajuste”. “Nós estamos em uma sociedade majoritariamente cristã, que não entende e não concorda com isso”, considera.
“Esses projetos são coisa de quem não tem o que fazer”, acrescenta o assessor da Comissão de Bioética da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), frei Antônio Moser.
Nesse embate entre os lobbies religioso e GLBT, o primeiro tem prevalecido com folga sobre o segundo: o arquivo tem sido o destino da quase totalidade das proposições que tratam dos direitos dos homossexuais. Até hoje, apenas o PL 5003/01, da ex-deputada Iara Bernardi (PT-SP), foi submetido a Plenário. Aprovado na Câmara, o projeto que transforma a homofobia em crime foi renumerado como PLC 122/06 e aguarda agora a análise do Senado.
Liberdade religiosa
Na Casa, no entanto, enfrenta resistência principalmente do senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), bispo da Igreja Universal do Reino de Deus e sobrinho do fundador da instituição, Edir Macedo. Para Crivella, o projeto – que estabelece a pena de até cinco anos de prisão para quem for condenado por preconceito contra homossexuais – atenta contra a liberdade religiosa dos cristãos. Com a aprovação, afirma o bispo, todos ficariam impedidos de condenar a homossexualidade, inclusive os sacerdotes em cultos religiosos.
O coordenador-executivo da ABGLT, Igo Martini, vê como infundado o argumento do senador: “Nenhum padre ou pastor foi preso nas cidades onde a criminalização já está valendo por lei municipal, como Londrina, Maringá ou Foz do Iguaçu. Isso é preconceito”. Procurado pela reportagem, Crivella não quis falar sobre o assunto.
Para Igo, a resistência dos religiosos à proposta surge porque, além de ser a primeira proposição especificamente voltada para a população homossexual a avançar no Congresso, o projeto pune quem agir de forma preconceituosa. “Outras propostas, que tratam da concessão de direitos e não de punição – como a união civil entre pessoas do mesmo sexo e a autorização para que transexuais troquem o pré-nome –, causarão menos polêmica”, prevê.
Igo avalia que o PL 122/06 será aprovado sem maiores dificuldades na Comissão de Direitos Humanos do Senado, mas enfrentará forte resistência na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e dificilmente resistirá ao Plenário. “De todo modo, já é muito importante para nós ver nossa pauta ser debatida”, pondera.
Mesmo parlamentares simpáticos à causa GLBT demonstram preocupação com a proposta aprovada na Câmara. O deputado Chico Alencar (Psol-RJ), por exemplo, acha que Iara Bernardi pode ter “pesado na mão”. “Até alguns representantes de movimentos homossexuais já admitiram que a proposta pode ser demasiada”, pondera.
A alternativa, nesse caso, seria a elaboração de uma nova proposição que estendesse os princípios da proteção que se quer dar aos homossexuais a toda a população, criminalizando qualquer tipo de discriminação.
Preconceito
Os movimentos em defesa da cidadania GLBT, contudo, insistem na necessidade de uma legislação específica contra a homofobia. “A Constituição já diz que todos são iguais perante a lei, o que queremos é uma legislação específica, que vai salvar a vida de pessoas assassinadas por puro preconceito, coisa que não acontece com outros grupos”, alerta Igo Martini.
Segundo dados da ABGLT, apenas em 2006, 88 homossexuais foram mortos em crimes motivados principalmente pela homofobia. Para a associação, uma lei que transforme o preconceito contra homossexuais em crime pode até “não reduzir o preconceito de cada um”, mas certamente vai diminuir o número de assassinatos e inibirá a discriminação.
Desde 1973, a homossexualidade já não é considerada uma doença. Hoje, psicólogos e médicos debatem se devem encará-la como escolha ou como uma tendência de personalidade, mas insistem que, de um modo ou de outro, o homossexual deve ser tratado como uma pessoa absolutamente normal. Baseados nessa visão, países como Dinamarca, França e Inglaterra já legalizaram a união civil entre pessoas do mesmo sexo.
A presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Cidadania GLBT – que reúne 199 deputados e 16 senadores –, deputada Cida Diogo (PT-RJ), classifica os religiosos como intolerantes. “Uma coisa é dizer que é pecado, outra é agredir, discriminar, desrespeitar. Eles podem até não concordar, mas daí a dizer que é doença é completamente diferente”, critica.
As divergências sobre a questão se refletem no conteúdo dos projetos de lei sobre o tema apresentados no Congresso. Além das já citadas proposições que ampliam os direitos dos homossexuais, há outras, como o PL 5.816/05, do ex-deputado Elimar Máximo Damasceno (Prona-SP), que cria um projeto de apoio psicológico para pessoas que decidirem “voluntariamente deixar a homossexualidade”.
Argumentos religiosos
Como os parlamentares contrários aos projetos de interesse dos homossexuais são, em sua maioria, ligados à Igreja Católica ou a grupos evangélicos, os movimentos GLBT evocam principalmente a separação constitucional entre Estado e igreja como argumento para rebater seus opositores.
Entretanto, os membros das frentes parlamentares da Família e Apoio à Vida e Evangélica rejeitam a tese de que suas posições partam de tentativas de generalização de preceitos religiosos. “Fundamentamos nossas opiniões em argumentos científicos, constitucionais, éticos e antropológicos. Nós não estamos defendendo apenas princípios religiosos”, afirma o deputado padre José Linhares (PP-CE).
Em discussões como a legalização do aborto ou das pesquisas com células-tronco embrionárias, os parlamentares católicos e evangélicos lançam mão da eterna questão sobre o momento em que a vida se inicia – se na concepção ou no nascimento – e conseguem embasar a argumentação nos trabalhos de uma ou outra corrente de estudiosos. Já no caso dos direitos dos homossexuais, a linha que separa o argumento científico do preconceito é mais tênue.
Rodovalho, por exemplo, afirma que um
relacionamento entre dois homens ou duas mulheres é errado porque antinatural. “A família é formada por um homem e por uma mulher. Não tem jeito de nascer um filho de dois homens ou duas mulheres. Por mais que a ciência queira, ela vai tentar fazer mais vai fazer uma aberração. Não precisa ir muito longe, é só aceitar o curso natural das coisas”.
Cida Diogo discorda: “Por que um casal do mesmo sexo não pode ter direito a compartilhar a vida com a pessoa que ama? Não falo de casamento, é só direito a respeito, a exercer a homossexualidade plenamente”.
Para o coordenador da ABGLT, Igo Martini, o resultado das últimas eleições explica o empenho das frentes em se desvincular dos dogmas religiosos. Segundo ele, a redução da bancada evangélica de 60 para 43 parlamentares, além de poder ser explicada pelo envolvimento de vários de seus integrantes com o escândalo dos sanguessugas, está ligada à rejeição do “fundamentalismo religioso” pelos eleitores.
Até mesmo padres e pastores admitem que sua postura não é a mais popular – apesar de, segundo pesquisa do Datafolha, 86% da população brasileira se declararem católicos ou evangélicos. Mesmo assim, eles não abrem mão do argumento evangelizador: “O mundo aplaude aquilo que é contra a verdade, mas nós cristãos temos que agir de acordo com a verdade e o bem, não em busca de aprovação ou votos”, defendeu o monsenhor José Ronaldo, padre católico, em seminário promovido pela frente da família no último dia 17 na Câmara.
Fonte: Congresso Em Foco