No dia 22 de março, um domingo, Ana Cláudia Melo da Silva, de 18 anos, foi esfaqueada em um apartamento em São Paulo. Seu filho, de um ano e sete meses, foi levado pelo ex-marido, Janken Evangelista, 29, principal suspeito do crime. Ana se mudou do interior da Bahia para fugir de Janken, que costumava agredi-la por ciúmes. Mas ele a seguiu até São Paulo e ganhou na Justiça o direito de ver o filho semanalmente. Na terceira visita, a jovem mãe foi assassinada. Esta não é uma história isolada. Casos de agressões e homicídios a mulheres se multiplicam no Brasil. E as igrejas evangélicas têm o desafio de ajudar a impedir que situações assim se espalhem ainda mais. Espaço de acolhimento e de tratamento da alma, nem sempre a Igreja, contudo, consegue lançar luz nos quartos escuros e vencer a lógica da violência que recai sobre mulheres de todas as classes sociais.
As estatísticas são alarmantes. De acordo com a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e o portal Violência Contra a Mulher (www.violenciamulher.org.br), em 2007, a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 registrou 205 mil atendimentos, um aumento de 306% em relação a 2006. Do total, dez por cento referem-se a denúncias concretas de violência. Foram 20 mil casos de agressões físicas, psicológicas, morais e sexuais contra mulheres. Houve também 211 tentativas de homicídio e 79 assassinatos. A psicóloga Esly Carvalho, autora do livro Família em Crise – Enfrentando problemas no lar cristão, diz que a violência doméstica faz parte dos segredos bem guardados de muitas famílias cristãs. Para ela, que é especialista em saúde emocional e costuma tratar os mais diversos tipos de abusos no ambiente familiar, é preciso romper o silêncio. Esly chama os crentes à responsabilidade. “A Igreja deve ser a primeira a erguer sua voz profética e denunciar o terrível segredo da violência doméstica”, afirma.
Evangélica, Esly acredita que¬ o primeiro passo para se combater a violência doméstica é falar sobre isso. “Quantas vezes você ouviu um sermão sobre violência doméstica?”, indaga. “As pessoas precisam ser orientadas”. Ela critica o legalismo religioso, que levaria muitas mulheres a suportarem caladas a violência. Mesmo sem querer entrar em polêmicas teológicas, Esly argumenta que a violência é, sim, uma razão bíblica para o divórcio. “A violência é uma traição. Quando o homem bate numa mulher, ele está traindo os votos matrimoniais. O Evangelho nos chama a uma vida em amor”, declara, observando que a sociedade está muito exposta à violência.
Dentro de casa – Segundo levantamento do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento, um em cada cinco dias de falta ao trabalho no mundo é causado pela violência sofrida pelas mulheres dentro de suas casas. A estimativa é de que o custo total da agressão doméstica oscile entre 1,6% e 2% do PIB de cada país. Dados da Organização Mundial de Saúde, publicados em 2005, revelaram que uma em cada seis mulheres no mundo sofre violência doméstica. Ainda segundo a pesquisa, até 60% dos casos envolvendo violência física foram cometidos por maridos ou companheiros.
Em Brasília, um programa do governo do Distrito Federal dá suporte a mulheres e crianças que já não podem ficar em casa, diante da violência de um marido ou companheiro. É a Casa Abrigo, criada em 1993 para acolher aquelas que não tem para onde ir. O refúgio é mantido sob sigilo e em constante vigilância. Ali, as mulheres estão sob proteção da Justiça e recebem apoio jurídico, social e psicológico. Evangélica, a agente social Maria Aparecida Pereira dos Santos, 30 anos, trabalha há cinco anos na instituição e diz que todo dia aprende alguma coisa com as pessoas que lá chegam. “Vem gente de todas as classes sociais. As que ficam são aquelas que não têm outra alternativa.” Ela conta ainda que chegam muitas irmãs em Cristo. Em sua opinião, esse problema não é abordado nas igrejas porque as pessoas não gostam de se expor. “Você não comenta esse tipo de coisa”, avalia. Ela confirma na prática profissional o que revelam os analistas: a maioria das mulheres não quer a separação, mas sim que o marido mude. “De dez que chegam aqui, oito voltam para os companheiros”, revela.
Em março, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), em Washington, nos Estados Unidos, premiou o Laboratório de Análise e Prevenção da Violência, o Laprev, da Universidade Federal de São Carlos (SP), por sua contribuição na criação do serviço de psicoterapia para mulheres vítimas de violência. Ao falar sobre o prêmio, a coordenadora da entidade, Lúcia Cavalcanti de Albuquerque Williams, disse que para enfrentar o problema da violência contra a mulher é preciso envolver toda a família, a escola e a comunidade. “O trabalho com o agressor, ainda pouco frequente no Brasil, é fundamental para que ele conheça e possa aplicar outras formas de resolução de conflitos. O acompanhamento psicológico das crianças também é importante porque elas geralmente carregam sequelas da violência intrafamiliar”, aponta.
“No Laprev atendemos gratuitamente tanto as vítimas como os agressores. Aqui eles têm possibilidade de tratamento”, diz o psicólogo e doutor em educação Ricardo Padovani, de 34 anos, pesquisador do laboratório, que estuda o perfil dos agressores conjugais. Segundo ele, ter sido vítima de maus tratos infantis e ter presenciado o pai agredir a mãe são fatores de risco para tornar-se um agressor, já que a criança aprende que a forma de resolver um conflito é pela violência. “Os agressores apresentam baixa auto-estima, têm uma rede social de apoio restrita, uma dependência emocional extrema da parceira e muita dificuldade de lidar com a frustração e de manejar a raiva”, explica ele, para quem as mulheres precisam ficar atentas a alguns sinais. “Ela deve observar se tem um parceiro que quer controlar tudo o que faz, demonstra ciúme excessivo, não permite que ela tenha amigos ou é uma pessoa obsessiva e possessiva”, enumera. Padovani vê no uso de álcool e outras drogas uma possibilidade de potencializar a violência já existente. “É um risco a mais. Mas isso só não explica o fenômeno”. O psicológo diz não atender com frequência pessoas religiosas. “Dependendo do perfil do indivíduo, um suporte religioso pode ser fator de proteção. Isso também depende de fatores pessoais”, analisa o especialista.
Mobilização – As igrejas estão despertando para o problema. Os adventistas realizam, desde 2002, a campanha mundial “Quebrando o Silêncio”, de educação e prevenção contra a violência doméstica. No quarto sábado de agosto, todas as igrejas da denominação abordam o assunto. Além disso, são realizados atos públicos como caminhadas, seminários e apresentações teatrais para adultos e crianças. Segundo a coordenadora do projeto para a América do Sul, a pedagoga Wiliane Marroni, é preciso reconhecer que a violência contra a mulher existe: “Temos que orientar os pais e os filhos”, diz, lembrando os princípios cristãos de amor e igualdade. O projeto inclui a publicação de vasto material educativo, disponível no site www.quebrandoosilencio.org.br.
Já a Igreja Evangélica de Confissão Luterana (IECLB) lançou, há dois anos, a cartilha Temas e conversas – Pelo encontro da paz e superação da violência doméstica, com reflexões e instruções para as comunidades da denominação. A cartilha define a violência contra a mulher como pecado. “Infelizmente, o lar é para muitas mulheres e crianças um lugar mais inseguro do que caminhar numa estrada escura durante a noite”, compara a psicóloga Valburga Schmiedt Streck. “A comunidade cristã é um espaço privilegiado para auxiliar as pessoas a identificar e rever os valores que norteiam as relações de gênero, com vistas a alcançar relações mais amorosas e de maior reciprocidade”, diz o pastor presidente da IECLB, Walter Altmann, quando do lançamento Do material.
No mês passado, em artigo publicado no Jornal do Comércio, de Pernambuco, o deão Sérgio Andrade, da Igreja Anglicana da Santíssima Trindade, em Recife, subiu o tom das críticas quanto à atuação das igrejas na prevenção desse tipo de violência. “Ao invés de anunciar o Evangelho comprometido com a libertação e a verdade, reforçamos modelos de subserviência e inferioridade feminina. E ainda utilizamos o nome de Deus em nossas argumentações”, afirmou. Para ele, é preciso “ler a Bíblia com os olhos de Jesus”, observando que “o homem não está acima da mulher, não tem domínio ou propriedade sobre ela, mas se coloca como companheiro”.
Solidariedade na igreja
O folder da campanha “Quebrando o Silêncio”, da Igreja Adventista do Sétimo Dia, enumera uma série de atitudes que podem ajudar vítimas de violência doméstica e seus agressores a encontrar uma solução. Destacando que “o abuso não é da vontade de Deus”, o folheto tem um tópico intitulado O que as igrejas devem fazer para prevenir a violência doméstica:
Incentivar líderes a falar sobre o problema;
Convidar pessoas experientes para fazer apresentações educativas, inclusive para crianças;
Participar de campanhas de conscientização na comunidade;
Orientar e instruir a congregação sobre como proceder em casos assim
Uma lei que protege
O principal instrumento jurídico de proteção e combate à violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil é a Lei 11.340/06, a Lei Maria da Penha. O nome homenageia a cearense Maria da Penha Maia, vítima de duas tentativas de homicídio perpetradas pelo seu então marido, o professor de economia Marco Antonio Herredia Viveros, pai de suas duas filhas. Paraplégica em decorrência do primeiro ataque, ela lutou por quase 20 anos para colocá-lo na cadeia. Com a demora da Justiça brasileira, Maria da Penha recorreu à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que, pela primeira vez, acatou denúncia de um crime de violência doméstica. Em 2001, a Comissão responsabilizou o Estado brasileiro por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres.
Entre as principais mudanças introduzidas pela lei, está a definição da violência doméstica e familiar contra a mulher como qualquer ação ou omissão que cause morte, lesão, so¬frimento físico, sexual ou psicológico, bem como dano moral ou patrimonial. Ela prevê ainda atendimento policial especializado para as vítimas, em delegacias de Atendimento à Mulher, bem como a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – uma mudança jurídica, já que, até então, esse tipo de crime era considerado de menor potencial ofensivo. As punições também ficaram mais severas, com o aumento do tempo máximo de prisão em caso de agressão doméstica, que passou de um para três anos.
Fonte: Cristianismo Hoje / Gospel+