O uso político e panfletário da figura de Jesus Cristo em prol da ideologia de esquerda é a principal característica do samba-enredo da Mangueira no carnaval 2020. A oposição ao governo do presidente Jair Bolsonaro agora está recebendo críticas pela presença de um pastor no desfile, e também pela representação banalizada do Filho de Deus.
Manu da Cuíca, uma das responsáveis pelo enredo da escola de samba, admite que ninguém na comunidade que a agremiação representa tem dúvidas da força política do carnaval. “Se fala tanto em Cristo, mas onde ele estaria hoje? Onde ele teria nascido? Ele teria nascido pobre. Ele poderia ter nascido na Mangueira. Se ele tivesse nascido no Morro da Mangueira, como é que seria sua história? O que o estado faz em geral com os jovens moradores de favela?”, especulou.
“A gente reforçou o que é de fato a história de Cristo. Cristo foi uma figura que nasceu pobre, lutou e se rebelou contra o estado e foi torturado e assassinado pelo estado. Foi uma pessoa que lutou pela inclusão e deu um sentido muito grande a palavra irmãos. A ideia de fraternidade e a ideia de partilha, que são ideias centrais na figura histórica de Cristo, a gente reforçou e colocou o samba em primeira pessoa, com uma ideia de pertencimento”, acrescentou, em entrevista ao portal de esquerda Brasil de Fato.
Assim que a escolha do tema para o enredo da escola foi anunciada, críticas de cristãos das diferentes tradições doutrinárias pipocaram nas redes sociais. Para os entusiastas do carnaval e/ou adeptos da esquerda na política, as críticas vêm de grupos “ultra-religiosos”.
O Instituto Plínio Corrêa de Oliveira, grupo conservador católico, lançou um abaixo-assinado online contra o enredo “A Verdade Vos Fará Livre”, que descreve o samba como “blasfemo” e atraiu aproximadamente 37 mil assinaturas até esta segunda-feira, 20 de janeiro.
Leandro Vieira, o carnavalesco que coordena o desfile da escola de samba, acredita que a imagem de Cristo foi construída para favorecer interesses europeus visando uma supremacia racial contra os negros: “Sabemos que é uma imagem construída para atender interesses eurocêntricos, interesses relacionados a supremacia da raça branca”, declarou, em entrevista ao portal Carnavalesco.
“Se temos uma coisa que podemos afirmar, com certeza, é que Jesus não era de forma nenhuma, pela condição territorial, da geografia, pelo biotipo do homem do oriente médio, é que ele não era branco dos olhos azuis e dos cabelos aloirados. Isso foi uma construção que foi feita para atender interesses, e o que eu vislumbro é a imagem de um Jesus que a gente possa chamar de Jesus da Gente”, declarou.
Valendo-se de um eufemismo sobre o uso político da figura de Jesus Cristo, Vieira acredita que não adicionou nada que contrarie o relato bíblico: “É um enredo tradicionalíssimo, é a biografia de Jesus Cristo, todo mundo sabe que é e eu não vou mudar. Ele nasce, cresce, é crucificado e ressuscita, esse é o enredo da Mangueira, esse ano não tem surpresa, não tem segredo, pois a biografia é essa, talvez, a mais conhecida da humanidade. De diferente, e nesse ponto o enredo é contra hegemônico, é o contorno físico desse Jesus, é como ele se apresenta”.
Confira a letra do enredo da Mangueira que usa a figura de Jesus como inspiração política:
Mangueira
Samba que o samba é uma reza
Se alguém por acaso despreza
Teme a força que ele tem
Mangueira
Vão te inventar mil pecados
Mas eu estou do seu lado
E do lado do samba também
Eu sou da Estação Primeira de Nazaré
Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher
Moleque pelintra do Buraco Quente
Meu nome é Jesus da Gente
Nasci de peito aberto, de punho cerrado
Meu pai carpinteiro desempregado
Minha mãe é Maria das Dores Brasil
Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira
Me encontro no amor que não encontra fronteira
Procura por mim nas fileiras contra a opressão
E no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão
Eu tô que tô dependurado
Em cordéis e corcovados
Mas será que todo povo entendeu o meu recado?
Porque de novo cravejaram o meu corpo
Os profetas da intolerância
Sem saber que a esperança
Brilha mais que a escuridão
Favela, pega a visão
Não tem futuro sem partilha
Nem Messias de arma na mão
Favela, pega a visão
Eu faço fé na minha gente
Que é semente do seu chão
Do céu deu pra ouvir
O desabafo sincopado da cidade
Quarei tambor, da cruz fiz esplendor
E num domingo verde-e-rosa
Ressurgi pro cordão da liberdade