A hipótese de a Justiça Eleitoral estabelecer como regra um parâmetro que inexiste enquanto figura jurídica, o chamado “abuso de poder religioso”, proposto por Luiz Edson Fachin, traz riscos à liberdade religiosa no Brasil e tem como alvo potencial os evangélicos, segmento que passou a protagonizar no âmbito político.
A sugestão do ministro Fachin ocorreu durante julgamento de uma ação que pede a cassação do mandato de vereadora da pastora Valdirene Tavares (Republicanos), em Luziânia (GO), no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Se adotada pelos ministros, a proposta criaria um parâmetro que não está previsto em lei.
O deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) criticou a possibilidade: “Existiria também o ‘abuso do poder sindical’, ‘abuso do poder ruralista’ ou ‘abuso do poder ideológico’?”, questionou, em entrevista à Folha de S. Paulo.
A jornalista Madeleine Lackso, da Gazeta do Povo, criticou a tentativa do ministro de impor um controle estatal à liberdade religiosa, já que na prática, impediria que pastores e outros líderes religiosos se manifestassem sobre princípios a serem priorizados durante eleições: “Será que nós, evangélicos, somos todos fantoches de pastores e incapazes de decidir? Não, ministro Fachin”, afirmou, em seu artigo.
“Equiparar a autoridade religiosa à política, que efetivamente exerce poder em nome do Estado, significa dizer que os indivíduos que a seguem não têm liberdade de escolha ou capacidade de raciocínio”, pontuou Lackso. “O abuso de poder que é punido pela legislação precisa aniquilar a possibilidade de liberdade de escolha, como é no caso do abuso de poder econômico e político. Para que assim fosse com o poder religioso, teríamos de presumir que toda pessoa que segue uma religião se torna um fantoche do líder religioso. É uma visão preconceituosa de mundo partilhada por muitos”, acrescentou a jornalista.
A tese de que há discriminação e uma tentativa de parar a ascensão de um movimento conservador no país capitaneado pelos evangélicos foi enfatizada por Madeleine Lackso em outro trecho de seu artigo: “O fato é que o aumento da representatividade de evangélicos na política incomoda e essa população é tratada pela mídia e pela nossa elite econômica e intelectual como um bloco monolítico de incapazes”.
“Chega a ser bastante curiosa a tentativa de atribuir poder religioso às autoridades protestantes, quando a teologia reformada diz que todo o poder vem de Deus. Ao contrário do que reza o imaginário de boa parte da mídia e da elite, pastores não são despachantes de Jesus nem fiéis são crianças inocentes a quem precisa se dizer em que acreditar. Obviamente há abusos, como em toda relação que envolve confiança e subjetividade. Mas o preconceito salta aos olhos quando se propõe tutelar evangélicos, o que jamais é feito, por exemplo, com as tribos sociais que acreditam na panaceia da maconha, em tarot, astrologia ou discos voadores”, protestou.
O que diz a lei?
A Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (ANAJURE) emitiu nota em parceria com a Frente Parlamentar Evangélica se opondo à proposta feita por Fachin no TSE, relembrando que o tema já esteve em discussão em julgamentos anteriores, e foi devidamente rejeitado porque a lei não faz previsões a respeito do assunto.
“O Tribunal reconheceu que nem a Constituição da República nem a legislação eleitoral contemplam expressamente a figura do abuso do poder religioso. Ao contrário, a diversidade religiosa constitui direito fundamental, nos termos do inciso VI do artigo 5º’”, resgatou a nota.
Os juristas e parlamentares evangélicos citaram ainda que “a relação do religioso com a política não pode ocorrer de qualquer forma, pois a legislação estabelece limites”, e que “a impossibilidade de financiamento de campanha por instituição religiosa e a vedação à veiculação de propaganda política nos templos” já é proibida.
“Vale dizer que não se veda que candidatos sejam apresentados em cultos religiosos. Em razão do disposto no art. 37, § 4º, da Lei 9.504/1997, não é possível, contudo, que a apresentação seja feita com o caráter de propaganda eleitoral”, pontua a nota.
Mais à frente, os riscos à liberdade religiosa são expostos pelos especialistas e legisladores: “Se, hipoteticamente, a limitação ao exercício da autoridade for imposta apenas ao segmento religioso, teremos nítida ofensa ao princípio da isonomia, visto que os líderes desse âmbito serão colocados numa posição singular perante outros setores da sociedade, uma vez que impossibilitados de realizar manifestações acerca de questões políticas e eleitorais. De qualquer modo, resta caracterizada, também, uma violação à liberdade religiosa (art. 5º, inciso VI, CRFB/88), visto que, nesse direito fundamental, estão inclusas as faculdades não somente de escolher uma crença, mas de pautar toda a vida em conformidade com seus preceitos e ensiná-los aos fiéis”.
O julgamento do caso em questão foi suspenso por um pedido de vistas do ministro Tarcisio Vieira de Carvalho, e deverá ser retomado em agosto.