A denúncia feita pela pastora Damares Alves a respeito dos crimes de pedofilia e tráfico humano na ilha do Marajó, no Pará, suscitou a ira de adversários políticos ligados a partidos de esquerda e acusações de que ela teria prevaricado ao não tomar providências.
Apesar de toda a repercussão em tom de incredulidade contra o relato feito pela pastora, há um histórico de reportagens reproduzidas pela mídia, incluindo veículos de imprensa tradicionais e até livros, apurando os casos recorrentes de exploração sexual infantil não apenas no Pará, mas em toda a região amazônica.
Estima-se que 9 milhões de crianças vivam na chamada Amazônia Legal, região formada por Acre, Amapá, Pará, Amazonas, Rondônia, Roraima e parte dos Estados de Maranhão, Tocantins e Mato Grosso.
O estado do Pará tem riquezas naturais, e parte de sua economia é baseada na exportação de minérios, energia, sementes e frutas. Por outro lado, as famílias mais pobres vivem em um cenário de crimes de tráfico de drogas e garimpo ilegal, situação que se repete nos demais estados da Região Norte do país.
O sistema de exploração desse tipo de crime contra crianças na região amazônica é antigo e foi abordado pelo jornalista Amaury Ribeiro Jr. no livro Poderosos Pedófilos, que cobre um período de 23 anos, entre 1997 e 2020, e aponta que parte das dificuldades em combater essa prática vem da crença de que os abusos são parte da cultura local.
Um dos casos relatados por Ribeiro Jr. envolvia políticos locais, como o ex-vereador Aelson Dantas da Silva, que foi condenado a 64 anos de prisão por estupro de vulnerável e exploração sexual de meninas indígenas em São Gabriel da Cachoeira (AM).
Nesse livro, o jornalista descobriu que funcionários terceirizados da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que referiam-se à rede de exploração sexual de crianças como “disneylândias do sexo”.
“Confesso que estou chocado e até chorei ao ler a reportagem”, afirmou José Gregori, secretário nacional dos Direitos Humanos à época, no governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), sobre uma matéria escrita por Ribeiro Jr. para o jornal O Globo.
Como o livro cobre um extenso período, também retrata a prisão, em agosto de 2018, do empresário Fabian Neves dos Santos, com 37 anos na ocasião, que comprou a virgindade de uma adolescente de 13 anos, negociada pela tia Aline Cristina de Souza Andrade por R$ 1.500.
Crime organizado
Em 2017, uma reportagem da RecordTV mostrou o cenário de miséria enfrentado por muitas famílias, e também a triste naturalidade com que os moradores da região, e até autoridades, falam desse sistema criminoso.
“O depoimento que nós já ouvimos é de que as próprias famílias, por questões financeiras, induzem essas crianças a irem aos rios, e é algo feito que meio de improviso. Qualquer pessoa que estiver ali, passando, as meninas ofereceriam, então, em troca de dinheiro ou em troca de óleo [diesel]”, resumiu a promotora Mônica Freire.
O óleo diesel é um recurso de extrema necessidade para as famílias da região, que muitas vezes precisam escolher entre comprar comida ou o combustível para se deslocarem pelos rios e vender a pesca, palmitos ou trocar outros itens.
A Assembleia Legislativa do Pará chegou a abrir uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que concluiu que entre 2005 e 2009, 100 mil crianças paraenses sofreram violência, abuso ou exploração sexual, sendo que 18% dessas vítimas tinham entre 6 e 10 anos de idade.
Vanderlei Guedes, pescador e morador do Marajó, afirmou que os moradores da ilha trabalham “com açaí, madeira, enquanto outros pescam”, e acrescentou que “essa molecada consegue nos barcos, [em troca] do seu corpo, mesmo”, referindo-se ao diesel.
“A CPI teve seus resultados inegáveis, mas os problemas continuam ainda muito graves no Pará”, disse o deputado estadual Carlos Bordalo.
Dois anos depois, em agosto de 2019, a Polícia Civil pôs em andamento a operação “Resgate Marajó”, considerada a maior da história do estado, e resultou em 20 prisões por crimes de exploração sexual, estupro de vulneráveis. O delegado José Humberto Melo Junior, titular da Delegacia de Polícia do Interior (DPI) comandou a operação.
“Por meio de um trabalho estratégico a Polícia Civil, vem reprimindo este tipo de crime na região, uma vez que a demanda tem sido muito grande”, declarou o delegado Rayrton Carneiro, assistente da DPI.
“Esse tema jamais deve ser tratado como tema cultural, pois o combate ao abuso e a violência sexual no Marajó tem sido tratado de uma forma sensível, combatido dia após dia, com um olhar diferenciado sobre essa questão da repressão contra esse tipo de crime, onde a maioria dos abusadores vem de dentro da família”, explicou o delegado Rodrigo Amorim, superintendente da Região do Marajó Oriental.
A delegada Thiciane Maia, titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEACA/DEAM), apontou que o relato das crianças em consonância com a pericia técnica revelam a extensão do abuso sexual: “Muitas crianças desconhecem os atos sexuais e por meio dos relatos e exames, nós adultos, conseguimos identificar o abuso claramente”.
O aspecto ‘cultural’
Outro delegado que atuou na investigação, Guilherme Gonçalves, titular da Delegacia do município de Muana, detalhou ao Ministério Público do Pará (MPPA) um caso de abuso sexual em uma família que já ocorria desde a década de 1990: um pai vinha tendo um relacionamento com sua filha mesmo estando com sua esposa, que pela condição de ser portadora de necessidades especiais, sem poder se expressar, acabou por não denunciar o marido.
“Após alguns anos o abusador, passou a abusar sexualmente de seus netos, que eram registrados todos no nome de sua esposa, passando ficar conhecido na localidade onde mora como ‘pai avô’. Tudo era visto pela família de uma forma normal”, contou Gonçalves.
Sensibilizada, a irmã Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante, da Comissão Justiça e Paz da Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), disponibilizou ajuda às autoridades: “O que for preciso, para contribuir no esclarecimento destes fatos, para a Polícia Civil e a rede como um todo, a instituição estará, sempre apta de portas abertas, para colaborar, resguardar e acima de tudo, proteger as crianças e adolescentes”.
Esses relatos são semelhantes aos descritos numa reportagem deste ano em que a BBC denunciou os diversos crimes que assolam a região amazônica, assim como o tráfico de pessoas e a prostituição infantil, que agora ganharam maior repercussão através do depoimento da pastora Damares Alves.
Conselheiros tutelares de São Paulo teriam descoberto e informado à Polícia que muitas dessas crianças são “alugadas” por caminhoneiros, que viajam a outros estados acompanhados das vítimas, que sofrem abusos durante todo o trajeto. Em maio de 2021 uma operação policial resgatou 16 crianças e adolescentes em feiras, porto, rodoviária, embarcações, quitinetes e casas noturnas nas zonas sul, centro-sul e leste de Manaus.
A matéria, também veiculada pelo portal G1, encerrava com a triste constatação: “A Tríplice Fronteira [com Peru e Colômbia] não é usada apenas pelos criminosos que exportam drogas. A região também é conhecida por ser um ponto de exploração humana. São diversos pontos onde adultos prostituem crianças e adolescentes, muitas vezes os próprios filhos, e traficam homens e mulheres para o exterior”.