Uma decisão recente de um juiz federal do Rio de Janeiro, atendendo ao pedido de uma entidade, determinou que a palavra lepra não fosse usada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL). O jornalista Alexandre Garcia ampliou o contexto questionando se a proibição abrangia a leitura dos evangelhos.
O juiz Fábio Tenenblat, da 3ª Vara Federal do Rio de Janeiro recebeu um pedido do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORPHAN) para proibir Bolsonaro de usar o termo “lepra”, e o juiz, aplicando uma interpretação heterodoxa de uma lei federal, atendeu.
A citação do termo em questão foi feita pelo mandatário enquanto fazia um prognóstico sobre a vida em sociedade após o surgimento do novo coronavírus e a doença acarretada, covid-19.
“O presidente Bolsonaro, em dezembro, em Santa Catarina, citando o Evangelho, disse que no tempo de Cristo havia a lepra e o mundo não acabou, e a lepra existe até hoje. E hoje existe o coronavírus e o mundo tampouco vai acabar por causa disso. Era esse o raciocínio, que a gente tem que conviver com uma doença”, contextualizou Garcia.
O veterano jornalista pontuou que “uma das formas de conviver com a doença é não deixar nenhum estigma desse nome, lepra” e que por esse motivo “se fez uma lei [… que] foi sancionada em março de 1995 pelo presidente Fernando Henrique [PSDB]”.
A lei 9.010/1995 diz que “o termo lepra e seus derivados não poderão ser empregados na linguagem empregada nos documentos oficiais da administração centralizada e descentralizada da União e dos estados membros”.
O texto acrescenta que “não terão curso nas repartições dos governos da União e dos estados, quaisquer papéis que não observem a terminologia oficial ora estabelecida, os quais serão imediatamente arquivados”.
Mordaça
“A lei não proíbe que alguém fale, que alguém pronuncie. Nem poderia, porque a Constituição garante a liberdade de expressão. […] A entidade pediu uma multa de R$ 50 mil por dia, o juiz não deu porque não está na lei. Mas, aí parece que o juiz é o sapateiro que vai além da sandália. Sutor supra crepidam iudicaveris. Sapateiro parece que foi além das sandálias”, criticou Alexandre Garcia.
A expressão em latim usada pelo jornalista é referência a uma lenda de um pintor chamado Apeles que um dia teve sua atenção chamada para um erro nos pés de uma figura em um de seus quadros. Um sapateiro notou e sugeriu que ele corrigisse. No dia seguinte, encorajado, o sapateiro decidiu criticar outras partes da pintura, e recebeu como resposta a frase “ne sutor ultra crepidam” (Sapateiro, não vás além das sandálias), que caiu no gosto popular durante o século I a.C. como uma forma de repelir palpites indesejados.
“É muito justo que a gente evite qualquer coisa que estimule qualquer tipo de preconceito. É justíssimo, e é humano. Faz parte da caridade. Agora, tem uma coisa: se o juiz está proibindo que qualquer pessoa da União pronuncie a palavra lepra, o que vamos fazer, por exemplo, com os capelães militares – que são funcionários da União, capelães militares evangélicos, católicos – na hora de ler Mateus 8:1, Lucas 5:12 e Marcos 1:40?”, questionou.
“O juiz está proibindo a leitura do Evangelho? Ne sutor. Não, sapateiro, não vás além da sandália. Parece que tem um pessoal aí que começou a levitar, indo muito além das sandálias, querendo dar palpite no nariz da escultura”, concluiu.