Um esforço de campanha do Partido dos Trabalhadores tentou transformar o “kit gay” em uma espécie de “lenda urbana”, como se fosse possível apagar a mobilização, realizada sob a gestão de Fernando Haddad no Ministério da Educação durante o mandato de Dilma Rousseff. No entanto, há registros em toda a imprensa e, principalmente, em páginas oficiais do governo e do Congresso.
O programa apelidado de “kit gay” era chamado oficialmente de Escola sem Homofobia, e sob a bandeira do combate ao preconceito à comunidade LGBT, atacava a “visão heteronormativa da sexualidade”, transmitindo conceitos que, consequentemente, desrespeitavam princípios religiosos e promoviam a famigerada ideologia de gênero.
“Qualquer busca em arquivos on-line mostra que não apenas o Escola Sem Homofobia realmente existiu – consistindo de uma cartilha e três vídeos cujos conteúdos estão inclusive disponíveis na internet – como era amplamente chamado de ‘kit gay’ por praticamente toda a imprensa. Foi elaborado pelo Ministério da Educação na gestão Fernando Haddad, com financiamento obtido por meio de emenda parlamentar da então deputada petista Fátima Bezerra, e era dirigido a alunos dos ensinos fundamental (a partir do 6.º ano) e médio”, destaca um editorial do jornal A Gazeta do Povo.
O projeto
O protótipo do que se tornaria o “kit gay” nasceu em setembro de 2005, quando o MEC divulgou 15 projetos de capacitação de profissionais da educação para diversidade sexual que receberiam investimento do governo federal. “MEC financia projetos de capacitação para diversidade sexual“, anunciava o site do órgão responsável pelas diretrizes da Educação no país.
Em novembro de 2005, ativistas LGBT foram tema de uma matéria da Rádio Câmara, por cobrarem recurso no Orçamento de 2006 para programa Brasil sem Homofobia, que o governo do ex-presidente Lula (PT) já vinha tocando nos anos anteriores.
Em 17 de maio de 2006 – no ano seguinte ao início da gestão de Fernando Haddad – o Ministério da Educação publicou em sua página na internet uma matéria intitulada “Programa do MEC forma professores para combater homofobia“, em que o texto detalhava a iniciativa que resultaria no “kit gay”: “O objetivo é contribuir para a formação de profissionais da educação que possam lidar de maneira adequada e de forma educativa, em seu cotidiano escolar, com temas relacionados à orientação sexual e de identidade de gênero”.
O tema continuou em debate no MEC, já que havia se tornado uma das prioridades da pasta à época, virou prioridade de uma força-tarefa: “MEC monta grupo de trabalho para discutir a homofobia“, informou o site do Ministério em 25 de maio de 2006.
No dia 29 de maio do mesmo ano, outra matéria sobre o projeto, chamada “MEC inicia discussões sobre homofobia“, dizia que “pela primeira vez na história do MEC, o tema homofobia – aversão a homossexuais ou ao homossexualismo, segundo Aurélio Buarque de Hollanda – entra para as discussões que formatarão uma política oficial sobre o tema no ministério”.
O projeto foi sendo desenvolvido a partir das experiências da iniciativa Brasil sem Homofobia, e em 2011, nasceu o Escola sem Homofobia, que foi anunciado em maio daquele ano. “MEC: kit anti-homofobia será entregue preferencialmente a professores”, anunciava uma matéria da Agência Câmara Notícias.
Na semana seguinte, a mesma Agência Câmara Notícias informou: “Comissão discutirá linguagem de livros didáticos“. O debate com os então ministros da Educação, Fernando Haddad, e da Saúde, Alexandre Padilha, durante audiência pública na Comissão de Fiscalização Financeira e Controle, se dava “para prestar esclarecimentos sobre a distribuição em escolas de vídeos e de cartilhas sobre homossexualidade”.
O começo da pressão contra Haddad por conta do “kit gay” foi a manifestação do deputado Lincoln Portela (à época do PR-MG), integrante da bancada evangélica, que usou a tribuna do Plenário da Câmara para defender “a demissão do ministro da Educação, Fernando Haddad”, por considerar que o político havia sido desrespeitoso ao prometer aos deputados evangélicos e católicos que recuaria em relação ao conteúdo do kit, que tinha como característica principal “incentivar a homossexualidade”.
“Ou ele nos respeita ou nós não o queremos mais à frente do ministério”, declarou Portela na ocasião, gerando o princípio da mobilização que derrotaria o “kit gay”.
Já à época, o deputado federal Jair Bolsonaro (do PP-RJ na ocasião) era alvo de represálias dos partidos de esquerda, pois o site da Câmara dos Deputados informou que o PSOL havia feito “Representação contra Bolsonaro no Conselho de Ética” por sua postura durante reunião da Comissão de Direitos Humanos do Senado, em que o capitão do Exército se envolveu numa discussão com a senadora Marinor Brito (PSOL-PA).
“Bolsonaro divulgava panfleto contra o kit anti-homofobia elaborado pelo Ministério da Educação e teria ofendido a senadora”, dizia o texto da Agência Câmara Notícias. “A imagem está lá: ela me deu uma porrada e me chamou de homofóbico, de corrupto e de assassino. E eu é que estou errado? Feri a feminilidade dela? Que me perdoem as mulheres do Brasil, que não são iguais a ela”, disparou Bolsonaro.
A partir dessa mobilização, a pressão de lideranças evangélicas e católicas contra o “kit gay” subiu de tom, tornando-se alvo das atenções da então presidente Dilma Rousseff. “Deputados católicos e evangélicos pressionam e governo suspende kit sobre homossexualidade”, noticiou a Rádio Câmara em 25 de maio de 2011.
“Após reunião com deputados da bancada católica, evangélica e em defesa da família, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, anunciou que o governo vai suspender a produção e distribuição de vídeos e de cartilhas sobre a homossexualidade. O chamado kit gay estava sendo planejado pelo Ministério da Educação e seria distribuído nas escolas de ensino médio”, enfatizava a matéria.
Outra reportagem, da Agência Câmara Notícias, dizia que “Pressão de bancadas faz governo cancelar kit sobre homossexualidade“, dando destaque às justificativas de Gilberto Carvalho: “Entendemos que, se você produz material que sofre uma tamanha contestação, o próprio objetivo [dele] passa a ser prejudicado. É melhor que você produza um material com mais diálogo, que ele seja aceito mais amplamente, para atingir o objetivo de diminuir o preconceito e a violência contra homossexuais”, afirmou o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República na ocasião.
Durante o processo de luta contra o “kit gay”, as bancadas evangélica e católica, inclusive, jogaram luz sobre um dos primeiros indícios de envolvimento com corrupção do então ministro da Casa Civil, Antônio Palocci (atualmente preso e desenvolvendo uma delação premiada).
A vitória nessa disputa política só veio quando os parlamentares haviam decidido obstruir votações na Câmara e convocar Palocci “para explicar a evolução rápida do seu patrimônio”, conforme informou a TV Câmara. Diante da ameaça de uma investigação que traria os primeiros fachos de luz sobre o gigantesco esquema de corrupção mantidos pelos governos do PT, Dilma determinou a suspensão do “kit gay”.
Imprensa
O portal do jornal A Gazeta do Povo trouxe um editorial na última quinta-feira, 25 de outubro, chamado “O misterioso sumiço do ‘kit gay’“, em que destaca o faz-de-conta dos políticos de esquerda a respeito do assunto, como se o material não tivesse sido elaborado ao longo de anos com participação direta de Fernando Haddad.
Segundo o jornal, as “tentativas de ignorar a existência ou ocultar a autoria de material elaborado pelo MEC em 2010 e 2011 são de profunda irresponsabilidade”. Confira a íntegra:
Na semana passada, o ministro Carlos Horbach, do Tribunal Superior Eleitoral, determinou que a campanha de Jair Bolsonaro retirasse do ar algumas menções ao “kit gay”, como ficou conhecido o conjunto de materiais didáticos oficialmente chamado de “Escola Sem Homofobia”, elaborado pelo governo federal quando Fernando Haddad, hoje adversário de Bolsonaro no segundo turno, era ministro da Educação do governo Lula. Bolsonaro havia – erroneamente – associado um livro específico, Aparelho sexual e cia., ao “kit gay”, o que levou ao questionamento que a Justiça Eleitoral acolheu. A blogosfera petista imediatamente divulgou a notícia como se o TSE havia declarado que o “kit gay” jamais tinha existido, alegação que ganhou eco até mesmo em outros veículos de imprensa sem alinhamento ideológico.
Essa interpretação da decisão do TSE é uma grotesca falsidade, como reconheceu o próprio Horbach na quarta-feira passada em outra decisão; afinal, o ministro proibiu única e exclusivamente que a campanha de Bolsonaro associasse o livro Aparelho sexual e cia. ao “kit gay”. Tanto é assim que Horbach negou um outro pedido feito pelo PT para que Bolsonaro não pudesse nem mesmo usar a expressão “kit gay” em referência ao Escola Sem Homofobia. “Os representantes buscam impedir que o candidato representado chame o material didático do projeto ‘Escola sem Homofobia’ de ‘kit gay’. Tal pretensão, caso acatada pelo Poder Judiciário, materializaria verdadeira censura contra o candidato representado”, escreveu o ministro.
Os militantes entrincheirados no MEC não se deixaram abater com o fim do “kit gay” e seguiram tentando impor suas ideias
Daí a irresponsabilidade que move quem agora alega que nunca houve um “kit gay”. Qualquer busca em arquivos on-line mostra que não apenas o Escola Sem Homofobia realmente existiu – consistindo de uma cartilha e três vídeos cujos conteúdos estão inclusive disponíveis na internet – como era amplamente chamado de “kit gay” por praticamente toda a imprensa. Foi elaborado pelo Ministério da Educação na gestão Fernando Haddad, com financiamento obtido por meio de emenda parlamentar da então deputada petista Fátima Bezerra, e era dirigido a alunos dos ensinos fundamental (a partir do 6.º ano) e médio. Quando parlamentares contrários à iniciativa tornaram o caso público, já na gestão Dilma Rousseff, a presidente resolveu suspender a elaboração e a distribuição do material, sendo duramente criticada pelas entidades do movimento LGBT.
O conteúdo elaborado pelo MEC estava longe de se limitar ao objetivo – correto, é preciso dizer – de combater a discriminação contra estudantes homossexuais. O material atacava o que chamava de “visão heteronormativa da sexualidade”, desrespeitava convicções religiosas a respeito do tema e trazia vários conteúdos em defesa da ideologia de gênero, a teoria que nega a realidade biológica da complementariedade entre homem e mulher para tratar a identidade de gênero como mera construção social. É natural que isso tenha causado indignação entre a população, àquela época e neste período eleitoral. Por isso, surpreende que alguns veículos de comunicação, que haviam adotado o termo “kit gay” em suas reportagens ao longo de 2010 e 2011, agora ignorem a existência do material, ou, quando isso não é possível, a sua autoria.
Curiosamente, convém bastante para a campanha de Fernando Haddad que toda a discussão fique restrita ao “kit gay”, já que este acabou não sendo distribuído, e ao livro Aparelho sexual e cia., que teve meros 28 exemplares adquiridos pelo Ministério da Cultura para bibliotecas públicas (e não escolares), porque isso dá a impressão de que a voracidade dos defensores da “desconstrução da heteronormatividade” e da ideologia de gênero não era tão grande assim. A verdade é que, durante as gestões petistas, o Ministério da Educação se tornou obcecado pelo tema, e a suspensão do “kit gay” foi apenas uma derrota menor diante de todo o esforço que o ministério continuou a colocar para lançar tais temas no currículo escolar, em flagrante violação ao direito dos pais de proporcionar a seus filhos uma educação moral de acordo com suas convicções.
Nem mesmo a mudança de governo, com o impeachment de Dilma Rousseff, sossegou os militantes com que o petismo havia aparelhado o MEC, pois eles tentaram, até o último momento, emplacar a ideologia de gênero na Base Nacional Curricular Comum, após as derrotas colecionadas em Legislativos de todo o país, do Congresso às câmaras de vereadores, quando das votações dos planos Nacional, estaduais e municipais de Educação – felizmente, o governo teve bom senso ao publicar a última versão da BNCC. Por isso, ainda que Bolsonaro tenha errado em associar um determinado livro ao material do MEC, seu alerta sobre as tentativas de atropelar a autoridade familiar em um tema tão delicado permanece mais válido que nunca, e as tentativas de minimizá-lo, inclusive dentro da imprensa, são de uma enorme irresponsabilidade.