Um autor de novelas da TV Globo publicou artigo em que se diz surpreso por cristãos terem reagido ao filme A Primeira Tentação de Cristo, do Porta dos Fundos. Ele considera que a forma como o Jesus homossexual foi apresentado é prejudicial ao movimento LGBT.
Vincent Villari, jornalista e roteirista, autor das novelas Ti-ti-ti, Sangue Bom e A Lei do Amor, criticou o Especial de Natal que está sendo veiculado pela Netflix. Para ele, faltou objetividade ao apresentar o Filho de Deus como homossexual e sobrou estereótipo.
“Fica subentendido que Jesus cedeu às tentações sexuais do ‘amigo Orlando’, no deserto. Em nenhum momento ele se assume gay ou beija o amigo na boca; o Jesus do episódio se assemelha mais a um rapazote da geração Z, meio atordoado diante das várias possibilidades oferecidas pelas ‘relações líquidas’ atualmente disponíveis”, escreveu o autor, em artigo publicado pela Folha de S. Paulo.
“O ‘amigo Orlando’ é, na verdade, Lúcifer, um homossexual tão exuberante e ridículo quanto os Seus Perus e as Veras Verões da época em que os gays se prestavam docilmente ao escárnio dos ‘cidadãos de bem’ para serem, se não aceitos, ao menos suportados no cantinho da sala”, afirmou Villari.
Segundo ele, o Porta dos Fundos terminou por colocar a homossexualidade como algo maligno: “Lúcifer revela-se o mal encarnado […] e Jesus, afinal, um bom rapaz, combate o demônio e o vence, honrando o título de Filho de Deus. Não que o Deus fanfarrão do episódio valha grande coisa, mas o mundo se reordena exatamente de acordo com a premissa bíblica do êxito do Bem sobre as tentações do Mal”.
A crítica de Vincent Villari expõe a busca do movimento LGBT por uma hegemonia de pensamento: “Senti um travo amargo diante daquele Lúcifer homossexual vulgar e grotesco que tentava corromper e degenerar, e acabava sendo destruído pela força do Bem. Era a última mensagem que eu desejava receber”, admitiu.
O autor revela surpresa com a repercussão negativa entre cristãos, o que provavelmente abafou a contrariedade interna entre ativistas homossexuais.
“Considerei que, talvez, prevendo a reação do público cristão, os realizadores tivessem buscado uma espécie de equilíbrio (um Jesus um pouco gay do bem e um diabo muito gay do mal) que, ao desagradar a todos por igual, obteria um saldo positivo. Um excesso de cautela inútil, pensei —afinal, se o Jesus do especial anterior era um mau-caráter e ninguém ligou, por que se queixariam agora? […] Levei o último grande susto do ano ao descobrir que não eram os gays que estavam se insurgindo, e sim os conservadores”, afirmou.
O defensor da desconstrução social conclui dizendo que o episódio mostrou que há desunião entre progressistas: “Fui conversar com amigos gays sobre o especial, a maioria não quis ver, por não ter interesse nas ‘transgressões vilamadalênicas’; e os que viram, pouca graça acharam. Em relação à censura, achei que haveria apoio ao grupo, mas novamente me enganei: nenhuma solidariedade especial, já que, como gays, não se sentiam representados e tudo lhes parecia apenas uma tediosa briga de homens héteros, brancos e de classe média entre si. Estamos mais cindidos, mais feridos e mais ressentidos do que supomos. Todos se sentiram desagradados, de fato, mas gritou mais alto quem está menos habituado a lidar com isso”, alfinetou.