Os smartphones são uma ferramenta de manipulação e invasão de privacidade. Há tempos sabe-se disso, já que as empresas atuam para antecipar impulsos de consumo observando hábitos. Mas, uma ferramenta assim, na mão do Estado, torna-se uma arma. Se for um Estado comunista, como a China, os limites não são mais do que apenas uma ideia distante.
Recentemente, um profissional de tecnologia que atuou em uma das maiores empresas do ramo na China decidiu denunciar o modus operandi do regime comunista liderado por Xi Jinping para cercear a liberdade religiosa no país.
Termos considerados “sensíveis ao Estado” vêm sendo bloqueados no tráfego de dados entre os smartphones dos cidadãos chineses, e uma das frases monitoradas – e censuradas – é “Deus Todo-poderoso”.
O homem que fez a denúncia foi identificado apenas como Li. Ex-funcionário da China Mobile Online Services Company, empresa subsidiária da maior estatal de telecomunicações do país, ele concedeu entrevista à revista Bitter Winter e declarou que “simplesmente não há privacidade na China”.
A realidade do país é que o governo comunista monitora as redes sociais, chamadas de voz e mensagens de texto nos smartphones, contou Li: “Se alguém disser algo considerado desfavorável ao PCC [Partido Comunista Chinês], ele será punido. Todas as pessoas são monitoradas e controladas sob o pretexto de reprimir o assédio”.
Ele próprio foi um “censor” e trabalhava ao lado de outras 500 pessoas no mesmo departamento de monitoramento de ligações e mensagens dos clientes. Esse departamento “ouve” todos os usuários da China Mobile, menos Hong Kong, Macau e Taiwan.
O software que realiza as verificações tem programação automática para detectar assuntos relacionados às crenças religiosas e políticas, e quando algo considerado desfavorável às autoridades é flagrado, os funcionários do departamento têm que analisar todo o conteúdo da ligação ou troca de mensagens.
“Se alguém não fosse cuidadoso o suficiente e perdesse uma informação sensível, isso resultaria na dedução de salário mensal e bônus de final de ano. Normalmente, eu precisava lidar com mais de dez mil informações todos os meses. Era inevitável cometer erros, pelo menos um ou dois por ano”, relembrou.
Segundo o portal The Christian Post, termos associados à fé, como “Deus Todo-Poderoso” e “Falun Gong” (referente a uma filosofia moral milenar da China) são algumas das mais “sensíveis”, além de qualquer menção à revogação da associação ao Partido Comunista ou à Liga da Juventude Comunista.
“Qualquer coisa considerada desfavorável ao PCC é rotulada como ‘política’. Por exemplo, medidas imediatas serão tomadas para interceptar mensagens que mencionem a extração de órgãos do PCC de praticantes do Falun Gong para evitar vazamentos”, descreveu Li. “Se quaisquer palavras confidenciais fossem deduzidas durante chamadas telefônicas, em MMS, SMS ou mensagens em sites de redes sociais como o WeChat, o sistema interceptaria automaticamente as informações e os serviços dos usuários seriam desativados instantaneamente, desabilitando essas pessoas para fazer ligações ou enviar mensagens”, acrescentou.
“Se os usuários desejam reativar o serviço, eles precisam ir a um centro de serviço da China Mobile com seu cartão de identificação e escrever uma declaração prometendo nunca mais compartilhar nenhuma informação sensível”, exemplificou.
Esse tipo de iniciativa na China faz parte de uma ação coordenada do governo para sufocar o cristianismo, visto como ameaça pelo Partido Comunista. Em 2017, a venda online de exemplares da Bíblia Sagrada foi proibida pelo governo. “Na China, o governo pode nos pedir para renunciar a qualquer privacidade sem quaisquer condições ou limitações”, lamentou Pan Lu, ex-professor do Ensino Médio na província de Jiangsu. “Isso é exatamente como [o slogan] ‘Big Brother está te observando’ no romance 1984 [de George Orwell]”, finalizou, associando a realidade à distopia do livro best-seller.