A relação entre evangélicos pentecostais com a política no Brasil vem atraindo as atenções de estudiosos sobre sociologia e política para o que representa a figura do pastor Marco Feliciano (PSC-SP), deputado federal eleito com mais de 210 mil votos, criticado por muitos e apoiado pela maioria dos fiéis evangélicos.
O professor Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro e doutor em sociologia pela Unicamp, publicou na revista Ultimato do bimestre setembro/outubro um artigo analisando a identidade e propostas dos evangélicos pentecostais em relação à política.
Freston diz que seu texto “é uma tentativa de recuar um pouco, de conseguir uma certa altura, para entender melhor de onde vem um fenômeno como Feliciano e o que está e não está em jogo no caso dele”.
Comentando a polêmica eleição do deputado para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara, o professor lembra que o protestantismo possui uma tradição longeva de defesa dos Direitos Humanos.
“Nos últimos cinquenta anos no Brasil, o catolicismo tem sido mais associado à defesa dos direitos humanos do que o protestantismo. Mas, historicamente, o contrário foi verdadeiro. O catolicismo somente incorporou uma preocupação com os direitos humanos a partir do Concílio Vaticano II, nos anos 60 […] O protestantismo, por outro lado, constitui a confissão religiosa mais profundamente ligada à evolução de conceitos de direitos humanos, culminando no forte envolvimento protestante na carta fundante das Nações Unidas em 1945 e na Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. Daí a ironia da situação atual no Brasil”, comenta Freston.
O professor ressalta que é vago o argumento usado pelos críticos a Feliciano e demais políticos evangélicos, de que a laicidade do Estado estaria sendo colocada em risco com o crescimento numérico dos cristãos de tradição evangélica.
“O que está em jogo (ou deveria estar em jogo) na controvérsia em torno de Marco Feliciano? Não é o conceito de Estado laico! A ‘teoria da secularização’ (quanto mais moderno, mais secular) tem sido fortemente questionada desde os anos 80. Nas últimas décadas, muitos estudiosos abandonaram (pelo menos parcialmente) a teoria da secularização e adotaram a ideia de “modernidades múltiplas” (há várias maneiras de ser moderno, inclusive maneiras religiosas). A religião continua (ou volta a estar) em evidência na vida política de várias regiões do mundo. Na realidade, a relação da religião com a vida pública ao redor do mundo é extremamente variada, assim como a relação entre religião e Estado”, explica o professor-doutor.
Paul Freston lista em seu texto, cinco modelos variados de conceitos de Estado, como forma de ilustrar que a proposta varia conforme a cultura local: “1. Estados religiosos (Ex.: Irã); 2. Estados com uma religião estabelecida (Ex.: Inglaterra) ou várias religiões estabelecidas ou oficializadas (Ex.: Indonésia); 3. Estados com a ‘laicidade passiva’ ou ‘plural’, ou seja, a neutralidade estatal e permissão para a visibilidade pública da religião (Ex.: Estados Unidos); 4. Estados com a ‘laicidade agressiva’ ou ‘de combate’, ou seja, que exclui a religião da esfera pública (Ex.: França, Turquia); 5. Estados antirreligiosos (Ex.: Coreia do Norte)”.
Segundo Freston, “a frase ‘o Estado é laico’ significa pouco, pois as últimas três opções (muito diferentes entre si) poderiam caber nessa frase”, e acrescenta que “frequentemente, há um uso ideológico desse lema para deslegitimar uma proposta adversária”.
“Não há modelo ideal de relações entre religião e Estado. O que há é sempre uma evolução a partir de realidades locais. A força de tradições locais não desaparece com mudanças meramente legais”, diz o professor.
O artigo de Freston observa a realidade do país: “O Brasil é singular […] no corporativismo eleitoral evangélico bem-sucedido. Ou seja, a prática de várias denominações apresentarem candidatos ‘oficiais’ em eleições e em convencer boa parte dos seus membros a votarem nesses candidatos, elegendo-os deputados federais, deputados estaduais e vereadores”, diz, acrescentando que isso só é possível devido à “organização da mídia no Brasil, que possibilita uma presença maciça das igrejas através da compra de horários e da aquisição de canais”, dentre outros fatores.
Citando uma pesquisa do Pew Forum realizada em dez países, inclusive o Brasil, Freston frisa que não há tendência ideológica de enfraquecer o Estado laico, e diz que “quando perguntados se deveria haver separação entre Igreja e Estado, ou se o país deveria ser oficialmente um ‘país cristão’, os pentecostais são mais a favor da separação (50%) do que da ideia de um ‘país cristão’ (32%)”.
Segundo ele, o cenário de crescimento dos evangélicos tende a mudar nos próximos anos, e assim, a forma como esse setor da sociedade se relacionará com a política.
“Por uma série de razões, a fase de crescimento rápido das igrejas evangélicas não deve durar além de mais duas ou três décadas. Depois, a porcentagem evangélica da população deverá estabilizar-se. Com isso, quanto às características sociológicas das igrejas evangélicas, tudo mudará. Haverá uma porcentagem cada vez maior de membros natos e de conversos mais antigos, e com isso haverá mais demandas por ensinamento e por outros tipos de líder eclesiástico. Haverá menos triunfalismo e maiores expectativas no campo da atuação social, e a interação com as outras religiões mudará radicalmente. E outras maneiras de relacionar-se com a política passarão a predominar. Portanto, o tipo de política evangélica que atualmente predomina não é parte essencial da fé evangélica e nem do seu segmento pentecostal. Um dia será superado”, prevê o professor.
Até que essas mudanças ocorram, o cenário deverá continuar apresentando opções semelhantes ao contestado pastor presidente da CDHM: “Por alguns anos, o corporativismo marcará fortemente a presença evangélica na vida pública, e fenômenos como Feliciano terão o seu lugar ao sol, para a alegria de alguns evangélicos e o desespero de muitos”.
Por Tiago Chagas, para o Gospel+