A revista Época fez uma entrevista dupla com os pastores Henrique Vieira (PSOL) e Silas Malafaia, sobre questões sociais e políticas que estão ditando o debate no país nesses meses que antecedem as eleições presidenciais.
A entrevista, feita com as mesmas perguntas aos dois pastores, expôs o pensamento amplamente antagônico de ambos, e a defesa de valores opostos na maioria das situações.
Vieira vem se tornando conhecido no meio evangélico como um militante político de esquerda, aliado aos princípios de seu colega de legenda, Jean Wyllys. Já Malafaia, conhecido há décadas, mantém sua postura de atacar de forma contundente as pautas progressistas.
Os dois falaram sobre diversos temas, incluindo a laicidade do Estado, a prisão do ex-presidente Lula (PT) e questões como ideologia de gênero, aborto, legalização de drogas e união de homossexuais, e só concordaram em uma coisa: Deus tem lugar na política.
Confira a íntegra da entrevista com Henrique Vieira e Silas Malafaia:
O prefeito Marcelo Crivella (PRB) reuniu-se com pastores na sede da prefeitura do Rio de Janeiro e lhes ofereceu uma série de privilégios em filas de cirurgias e na isenção de IPTU. É certo isso?
Henrique Vieira: Isso é improbidade administrativa, além de ferir o princípio da igualdade de direitos. É uma prática política nefasta, corrupta, antirrepublicana e também contradiz um princípio da palavra de Deus, que não faz distinção de pessoas. Trata-se de uma prática antibíblica, porque coloca pessoas próximas a ele à frente de outras. Gera uma relação de injustiça
Silas Malafaia: Acho que ele errou, não é o melhor procedimento para um prefeito fazer esse tipo de encontro. Mas é interessante observar duas coisas. O Crivella faz reunião com vários grupos, assim como governadores e prefeitos recebem líderes do candomblé ou de outras religiões. Se não for evangélico, pode? Pautas reivindicativas qualquer um pode apresentar. Outro ponto é que aqueles pastores que estavam na reunião não representam nem 0,1% do nosso povo.
Afinal, Deus tem lugar na política?
Vieira: Deus ama a humanidade, que é necessariamente política, para além de partido, eleição ou cargos no estado. Nesse cenário tem lugar, porque princípios que aprendemos com Deus influenciam nossa ação na sociedade.
Malafaia: Claro, repare como a Reforma Protestante contribuiu para a civilização ocidental. Tiramos o mundo do obscurantismo séculos atrás. Essa aí os marxistas e esquerdopatas têm de engolir em seco. O marxismo, aliás, faliu no mundo todo. Na União Soviética, na China e em Cuba. Já as nações que mais distribuem renda no mundo são as protestantes. Estados Unidos, Alemanha, Canadá, Dinamarca, Suíça.
Transformar valores bíblicos em lei fere a laicidade do Estado?
Vieira: Sim. Os valores bíblicos têm de influenciar nosso comportamento e nossas ações individuais, mas precisamos entender que a democracia pressupõe respeito à diversidade. Um valor bíblico é amar o próximo como a si mesmo. E o amor não impõe, dialoga. Quem ama não obriga o outro. Isso me leva a respeitar a diversidade e não usar leis para impor uma doutrina
Malafaia: O Estado é laico, sem dúvida. Mas a política também? Não. O Parlamento é feito pela convicção das pessoas, sejam elas ateístas ou religiosas. Há um jogo de preconceito sobre tudo que vem dos evangélicos. Então só o marxismo pode fazer leis e a ideologia cristã não? Ninguém quer obrigar as pessoas a seguir uma religião. Mas quero poder influenciar em outras questões. Quer dizer que quando alguém defende a vida é religião?
Deputados evangélicos vêm tentando tornar a legislação sobre aborto no país mais restritiva, proibindo-o mesmo em caso de estupro. O senhor apoia esse tipo de mudança?
Vieira: É evidente que não apoio essas iniciativas dessa bancada evangélica. Quando se fala em legalizar o aborto, não significa estimular ou naturalizar a prática. A criminalização não reduz o número de abortos praticados e leva a uma quantidade enorme de morte de mulheres, especialmente pobres e negras, além de criar um ambiente de culpa e inibição para elas. Legalizar significa, em vez de punir, cuidar. O número de abortos caiu nos países que legalizaram, o que significa que a vida foi mais respeitada e preservada. Essas iniciativas da bancada evangélica são insensíveis, de quem defende mais o dogma do que a dignidade humana.
Malafaia: Nem preciso abrir a Bíblia para discutir isso. Quem define onde começa a vida é a biologia. O início é na concepção. A mulher é o agente passivo, e o bebê o ativo. O aborto é o massacre dos poderosos contra os indefesos. Sou contra qualquer tipo, mesmo depois do estupro. Pior que o trauma de ser estuprado é o assassinato de alguém. Nenhum ser humano é mais humano que o outro.
Especialistas vêm defendendo a descriminalização das drogas como medida para reduzir a violência. Como vê esse tipo de proposta?
Vieira: Eu defendo. Hoje morre muito mais gente de tiro do que de overdose. A política que criminaliza não reduz o número de usuários de drogas ilícitas. Os grandes traficantes são bilionários, têm mecanismos internacionais de evasão de divisas, tráfico de armas e movimentação de dinheiro. Essa política mata pobres e negros. Isso não significa naturalizar o uso. Mas legalizar é desarticular o tráfico e abrir espaço para políticas de educação, conscientização e tratamento no caso do uso abusivo que gera vício. Como pastor e discípulo de Jesus, estou preocupado com a vida. Estamos vendo uma juventude toda indo embora, enquanto os grandes fornecedores lucram em cima dessa carnificina. Cuidar, acolher e ouvir é algo muito pastoral
Malafaia: Mais uma falácia. Trabalho com famílias desesperadas que lidam diariamente com o problema das drogas em seus lares. As pessoas se transformam, ficam alienadas e querem roubar para comprar mais e mais. O ser humano tem essa faceta insaciável muitas vezes. A maconha, se for legalizada, será a porta de entrada para outras drogas. Na verdade, os traficantes vão agradecer se ela for liberada. As drogas legalizadas como cerveja e cigarro já trazem bilhões de reais de prejuízos, imagine se outras forem também. Vamos ver se não haverá aumento de consumo nesses países que adotaram políticas mais liberais, como Portugal e Uruguai. Outra coisa. Se é uma boa ideia, por que os Estados Unidos não fizeram até hoje?
Casais gays devem ter direito ao casamento civil?
Vieira: Claro que sim. Defendo a separação entre a Igreja e o Estado. Reconheço plena cidadania para os LGBTs. As pessoas não são menos cidadãs por sua orientação sexual. Devem ter todos os seus direitos resguardados e perante a lei devem ter o casamento como direito. Defendo o casamento civil porque defendo a plena garantia de direitos para a comunidade LGBT. Estamos falando de pessoas de carne e osso, feitas à imagem e semelhança de Deus.
Malafaia: A Constituição fala de união entre homem e mulher. Não tenho nada contra o sexo das pessoas, por mim podem fazer o que quiserem. Há uma mania de querer me ridicularizar de homofóbico, não sou nada disso. Mas tenho direito a ter minha opinião. Acredito que a base da civilização humana é o homem, a mulher e sua prole. São esses laços familiares que tornam a sociedade mais forte. Também sou contra casal de homossexuais criando crianças. Sou psicólogo, sei o que estou dizendo. Vamos ver onde isso tudo vai parar. Ou então, se pode tudo, vamos legalizar homem ter relação com cachorro, oras.
As escolas devem discutir temas como gênero e orientação sexual?
Vieira: Temos uma sociedade que impõe violência às mulheres e aos LGBTs. O feminicídio e os crimes de ódio contra LGBTs não são casuais. A escola deve educar para a cidadania, para o respeito à dignidade humana e contribuir com uma cultura sem violência. Entendo, portanto, que deveria trabalhar o tema de gênero e diversidade na perspectiva de respeito, igualdade e combate à violência. Erotização, promiscuidade, pornografia e pedofilia são expressões de quem não entende o debate ou, se entende, de forma mal-intencionada manipula as informações com inverdades. Não se trata de nada disso. Eu como cristão não quero ficar em silêncio diante da violência contra mulheres e os LGBTs.
Malafaia: Não. A escola apenas ensina, os pais é que educam. Educação moral na escola? Na-na-ni-na-não. Os esquerdopatas seguem o sociólogo Herbert Marcuse, que prega a conquista da hegemonia por meio da cultura. Que submeter criança a debate sobre ideologia de gênero o quê? Vai plantar batata. Esse jogo ideológico é que permeou o debate sobre a Queermuseu (Exposição montada no ano passado em Porto Alegre com obras que exploravam a diversidade de expressão de gênero). A criança não sabe distinguir essas coisas. Não defendemos a censura nesse caso, mas apenas a classificação indicativa.
Neste ano, em quem o povo evangélico deveria votar para presidente?
Vieira: Dá para falar em princípios, e cada irmão e irmã vai definir pessoa, programa político e candidato. Em quem votar, não. O voto consciente é aquele que tem a ver com princípios do Evangelho: justiça social, combate ao acúmulo de riquezas, defesa dos oprimidos, respeito à diversidade e promoção da paz. A partir desses parâmetros, que cada irmão olhe os programas e escolha seu candidato.
Malafaia: Acredito que, se não houver um fato novo, Jair Bolsonaro terá 70% ou até mesmo 80% do voto evangélico. Ele tem uma imagem de ser íntegro. Mas, se alguém disser que os líderes evangélicos terão influência nisso, é mentira. Não é assim que acontece.
É justa a prisão do ex-presidente Lula?
Vieira: Não. Considero que o processo foi indevido e com um certo caráter de perseguição. Não se trata de ser petista, e eu não sou. Do ponto de vista jurídico, não há provas e, do ponto de vista político, fica evidente que há seletividade. Não consigo olhar para esse processo do Lula exclusivamente do ponto de vista jurídico. Houve a articulação de determinados setores, com interesses inescrupulosos, visando criminalizar uma legenda e uma figura política, que é o Lula. Não tem nada a ver com ética na política. Tanto é que grandes corruptos continuam soltos com provas contundentes e até agora não foram devidamente punidos.
Malafaia: Claro que é. Tem de estar cego e ser muito esquerdopata para acreditar que ele é inocente. Lula articulou a maior roubalheira da história deste país. O caso do tríplex é pouco. E os milhões de reais que recebeu de palestras que ninguém nunca viu? Fora as conexões internacionais. Quem emprestou bilhões de reais para governos estrangeiros corruptos e comunistas? E o dinheiro que gastamos com a compra da refinaria de Pasadena, uma porcaria velha e falida? É uma vergonha.
Riquezas materiais são uma recompensa para a fé?
Vieira: Não. A teologia da prosperidade é diabólica. Serve para explorar o povo e enriquecer lideranças religiosas que não têm compromisso nenhum com o Evangelho. Jesus foi pobre, andou com os pobres e morreu pobre. Se riqueza material for sinal de bênção de Deus, então Jesus não foi abençoado, o que é uma grande contradição. Em vez de denunciar a desigualdade, você culpa o pobre por sua pobreza. Basicamente faz com que dependa da Igreja para ter abundância material. Via de regra essa abundância vem com ofertas. Cria uma lógica de barganha com Deus. Pobreza não é fruto de falta de fé, é fruto da desigualdade e da exploração sobre o povo. Essa deveria ser a denúncia dos evangélicos, porque foi a denúncia de Jesus.
Malafaia: É besteirol dizer para o evangélico que, se ele der oferta, vai se tornar rico. Há diferença entre prosperidade e riqueza. A primeira envolve bem-estar emocional e espiritual. Antigamente nós, evangélicos, éramos esculhambados por causa desse tema. O dízimo é da Bíblia, não é nem dos evangélicos nem dos católicos. Se há alguém roubando esse tipo de oferta dos fiéis, está errado. Vale lembrar: há ladrão e corrupto em todos os setores, inclusive no jornalismo. É um absurdo os esquerdopatas quererem tributar o dízimo. Em nenhum lugar do mundo isso acontece. Na Inglaterra, por exemplo, cada libra que o camarada doa para uma igreja e depois declara, o governo vai e dá 25% do valor para a instituição. Eles entendem o papel social das religiões e que muitas vezes chegamos aonde o Estado não alcança.
O que você acha de Malafaia/de Henrique Vieira?
Vieira: O Malafaia é alguém que destila ódio, que apresenta um discurso vazio de compaixão, amor e sensibilidade humana. É alguém que com suas práticas se aproxima de um fascismo brasileiro contemporâneo.
Malafaia: Acho ele um pobre coitado e dissimulado. Integrante de um partido, o PSOL, que, na hora da eleição, nega o que prega. Estou sendo processado pelo Marcelo Freixo por dizer que ele defende a liberação das drogas. E não é verdade? Agora, até o voto evangélico eles querem. Estão filiando pastores para confundir o povo. Não adianta, vamos largar o aço em cima.