O representante no Brasil do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Unaids), Pedro Chequer, afirmou no fim da última semana que a influência de grupos religiosos está diminuída a eficácia das políticas brasileiras para a prevenção da AIDS.
Pedro Chequer fez essas afirmações em uma entrevista ao Estadão, na qual falava sobre a 19.ª Conferência Internacional de AIDS, que começa no dia 22, em Washington. Segundo ele o Brasil, que já se destacou nesses encontros, pelo seu pioneirismo em políticas públicas de prevenção e tratamento, vem perdendo a vanguarda na área de prevenção.
Na entrevista ele afirmou que grupos religiosos conservadores estariam obtendo sucesso em suas pressões sobre o Estado brasileiro para dificultar a disseminação de informações e métodos de prevenção. Ele destaca ainda que o Brasil já vive uma situação de ambiguidade, entre o confessional e o laico, com reflexos no campo dos direitos humanos e da cidadania.
– Em qualquer país do mundo, a incorporação de doutrinas e práticas religiosas pelo Estado tem reflexos no campo dos direitos humanos e da cidadania. Na área em que atuo, o que se observa é o surgimento de uma agenda que obstaculiza os princípios fundamentais da prevenção da AIDS, a partir de evidência científicas – afirmou Chequer, que comparou a influência religiosa no Estado brasileiro ao que ocorre em países islâmicos.
Chequer citou ainda a proibição do Kit Gay como um exemplo da intervenção religiosa na política, e alegou que se tratava “de um bom material, respaldado por duas instituições ligadas à ONU – UNESCO e UNAIDS”. Ele afirmou ainda que a pressão atual, diferente das décadas de 80 e 90 quando era majoritariamente exercida pela Igreja Católica, vem de “setores conservadores evangélicos”.
Leia na íntegra a entrevista, feita pelo jornalista Roldão Arruda:
Em recente encontro sobre Aids, promovido pelo Ministério da Saúde, em Brasília, o senhor criticou o governo por ceder às pressões de grupos religiosos, deixando de conduzir adequadamente políticas de prevenção da Aids.
Quero dizer, em primeiro lugar, que não sou favorável a qualquer tipo de cerceamento da liberdade religiosa, um direito fundamental previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos e também na Constituição do Brasil. O Estado deve ser laico e deixar fora de sua jurisdição qualquer matéria de caráter religioso. Esse é um princípio democrático essencial. Quando falo deste assunto, a minha preocupação é outra. Está relacionada ao fanatismo religioso, que pode levar a situações extremas, como a imposição de uma religião única a todos os cidadãos. Quando se tenta impor princípios religiosos, sejam eles quais forem, também ocorre uma violação dos princípios da Declaração Universal, que reconhece o foro íntimo da consciência.
Na sua avaliação o Estado brasileiro não é 100% laico?
Do ponto de vista estritamente legal, sim. Os legisladores brasileiros sempre se preocuparam com essa questão. A primeira constituição republicana, de 1891, defendeu a liberdade religiosa e, ao mesmo tempo, explicitou a laicidade do Estado. Na prática, porém, nos deparamos com fatos que colidem com esses princípios. Eu citaria como exemplo o financiamento de atividades religiosas com recursos públicos e a presença, nos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, de símbolos religiosos, como o crucifixo. Exibidos de modo ostensivo, eles deixam claro a inobservância dos princípios constitucionais. O Estado vive sob constante pressão de grupos religiosos contrários à sua laicidade.
Poderia citar um exemplo?
Em 1930, sob pressão da Igreja Católica, o governo de Getúlio Vargas reintroduziu o ensino religioso nas escolas públicas. Isso foi formalizado na Constituição de 1934 e nas outras, incluindo a de 1988. Não ficou claro, porém, a quem caberia o ônus dessa atividade. Em 1961, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação estabeleceu que o ônus não seria do poder público. Quando essa lei foi reformulada, em 1996, o princípio foi mantido. Logo depois, porém, por pressão da Igreja Católica, sofreu alteração.
O senhor se refere à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)?
Sim. Ao criar o Fórum Permanente do Ensino, a CNBB estabeleceu uma estratégia de pressão politica, com vistas a aumentar sua influência e fazer avançar os princípios do ensino religioso nas escolas públicas. Está conseguindo inserir na legislação de cada sistema estadual um conteúdo interconfessional, com professores credenciados pelas entidades religiosas, mas inseridos no corpo docente por concursos públicos e remunerados pelo Estado. O Fórum tem se mostrado extremamente eficaz, mesmo considerando a maior diversidade religiosa e o aumento da força das igrejas evangélicas. É interessante notar que a Concordata, que o Vaticano e o Brasil assinaram em 2008, focaliza particularmente o ensino religioso nas escolas públicas.
Vê nisso mais um tipo de ameaça ao Estado laico?
A Concordata ocorre num contexto ambíguo, que deixa o Estado brasileiro entre o confessionalismo e a laicidade. Esse tratado entre Brasil e Vaticano chegou a ser objeto de oposição por parte de confissões evangélicas tradicionais. Uma voz que se destacou foi a do pastor presbiteriano Guilhermino Silva da Cunha, do Rio. Em carta aberta aos presidentes da República, da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal, ele denunciou a Concordata por trazer de volta “praticamente todos os privilégios do padroado”. Em relação ao ensino confessional nas escolas públicas, considerou que o documento é inconstitucional, pois “privilegia uma denominação cristã em detrimento de outras e agride a liberdade religiosa em relação a judeus, budistas, espíritas e muçulmanos; e agride agnósticos e ateus”.
De que maneira isso ameaça a prevenção da Aids, área na qual o senhor atua?
Em qualquer país do mundo, a incorporação de doutrinas e práticas religiosas pelo Estado tem reflexos no campo dos direitos humanos e da cidadania. Na área em que atuo, o que se observa é o surgimento de uma agenda que obstaculiza os princípios fundamentais da prevenção da Aids, a partir de evidência científicas. Isso é percebido de maneira clara nos Estados confessionais islâmicos. Nos Estados Unidos, houve efeito semelhante na era Bush, quando os princípios teológicos passaram a ser a referência para o estabelecimento de políticas públicas, com sérios reflexos em todos os países abrangidos pelo PEPFAR (plano lançado pela Presidência dos Estados Unidos para a redução da Aids no mundo).
Há risco de retrocesso em relação às políticas públicas estabelecidas?
A incorporação – ou mesmo a proximidade do Estado – de princípios religiosos, notadamente aqueles que demonizam aspectos relativos à igualdade de gênero, ao respeito a diversidade sexual e à garantia de direitos às minorias sexuais tem resultado em retrocesso significativo nas políticas públicas de prevenção da infecção pelo HIV. Sob a égide desses princípios, o uso do preservativo, por exemplo, é uma prática condenável.
Pode citar casos em que observa retrocesso?
Podemos citar restrições a campanhas publicitárias que, ao focalizar as populações mais vulneráveis, tratam a questão da prevenção de modo aberto e claro.
Isso não é novo. A CNBB interferiu nas campanhas do Ministério da Saúde desde a eclosão da Aids, na década de 1980. O que mudou?
Nas décadas de 80 e 90, a pressão sobre o Estado, com o intuito de estabelecer parâmetros distintos daqueles cientificamente construídos na prevenção do HIV, era feita basicamente pela Igreja Católica. Em anos recentes, porém, ela passou a ser exercida, com maior êxito, por setores conservadores evangélicos.
Mais uma vez vou pedir que cite exemplos.
Vou citar dois, absolutamente claros. O primeiro foi a proibição do material didático que se destinava à
construção de uma agenda anti-homofóbica no ambiente escolar.Está se referindo ao material que ficou conhecido como kit gay?
Sim. Trata-se de um bom material, respaldado por duas instituições ligadas à ONU – Unesco e UNAIDS. O segundo exemplo foi a proibição da veiculação da campanha desenvolvida para o Carnaval deste ano. Clara e direta, foi lançada em um ato publico amplamente difundido, mas não foi veiculada. Devido a pressões, teve que ser substituída às pressas, por uma outra, improvisada, inócua e evasiva. A população mais vulnerável deixou de ser focalizada.
Como vê a ação dos pastores que prometem a cura da Aids?
Apesar da garantia constitucional da pratica religiosa, ela não deve avançar além do escopo estabelecido para o exercício da mesma. Refiro-me a essa prática, cada vez mais frequente no cotidiano nacional, da chamada cura da Aids. Isso tem consequências nefastas para pacientes que, convencidos de que estão curados, abandonam o uso dos antirretrovirais, arsenal terapêutico fundamental para a preservação da vida com qualidade e ampliação da sobrevida dos pacientes. Há dezenas de relatos de óbitos em todo o pais como consequência dessa pratica.
Acha possível coibir tais práticas?
Diante do fato de que nenhuma instituição do Estado levanta objeções a esse tipo de ação, o Unaids encaminhou ao Conselho Federal de Medicina um pedido para que investigue e tome providências para coibi-la.
Qual foi a resposta do Conselho?
Respondeu positivamente e o tema está sob análise.
Fonte: Gospel+