Uma influencer cristã compartilhou um vídeo de uma descoberta que fez sobre as notas de rodapé dos textos bíblicos, em especial do Novo Testamento, e a suposta remoção de versículos bíblicos. O vídeo se tornou viral e teólogos reagiram explicando decisões que são tomadas pelos tradutores em relação aos manuscritos mais antigos da Bíblia.
A influencer Michelle Strazzeri fez um vídeo mostrando o que seria a remoção do versículo 21 do capítulo 17 de Mateus, que diz “mas esta espécie só sai pela oração e pelo jejum”, frase que Jesus disse a seus discípulos logo após ter expulsado o demônio de um menino.
“A meu ver é um dos versículos mais importantes e mais eficazes na luta espiritual. Eu fiquei em choque e fui pesquisar o que os teólogos e acadêmicos da Bíblia estão falando sobre isso. E eles estão achando super normal, porque realmente nas versões mais antigas não são todas que incluem isso, então eles resolveram tirar”, diz.
O exemplar mostrado por Michelle Strazzeri é uma tradução ESV Study Bible, uma das Bíblias de Estudo mais reconhecidas em língua inglesa. No vídeo, ela sugere aos seguidores que “comprem Bíblia, comprem livros clássicos cristãos porque daqui para frente as coisas podem se complicar muito rapidamente”.
Crítica textual
Como o vídeo de Michelle viralizou, alguns teólogos brasileiros decidiram responder aos comentários da influencer, apresentando o outro lado da história. Um dos que se manifestaram foi o pastor batista e escritor Cacau Marques, que explicou de forma breve uma das matérias que compõem o estudo teológico, a crítica textual:
“Isso se chama crítica textual. Não é perseguição nem adulteração. É um estudo com base nos manuscritos para compreender o processo de formação do texto bíblico e remontar qual seria o texto original. É uma atividade importantíssima e, sem ela, teríamos muita dificuldade em confiar nas traduções que temos”, explicou o pastor.
Na visão de Cacau Marques, “o tom conspiracionista desse vídeo só atrapalha o bom entendimento da teologia e sequer faz sentido”, disse, em comentário no próprio vídeo da influencer.
“Se estivessem tentando mudar a Bíblia ou ocultar alguma coisa, não teriam mantido a numeração dos versículos nem a nota no rodapé. Os editores só estão seguindo o que os melhores estudos do texto mostram”, enfatizou Marques.
A mesma linha foi adotada pelo podcaster e teólogo Rodrigo Bibo: “Se você consome teologia no TikTok e no Instagram, se é só essa sua fonte teológica e você está acostumado com videozinhos curtos […], a chance de você estar sendo enganado, consumindo coisa ruim, é altíssima”, desabafou.
Bibo pontuou que a decisão de remover um versículo e informar essa medida em nota no rodapé se deve ao fato de que “muitos manuscritos não trazem esse trecho, então provavelmente, como a maioria dos manuscritos – e até manuscritos mais antigos não trazem – isso não esteja no original”.
Victor Fontana, pastor presbiteriano e youtuber, lembrou que muito da confiabilidade dos textos bíblicos vem do esforço incessante dos estudiosos em seguir aprofundando a análise das cópias manuscritas da Bíblia que fizeram parte da rotina da Igreja nos primeiros séculos, quando ainda não haviam impressões como as que são feitas desde a Reforma Protestante:
“A gente começou a comparar esses pergaminhos, esses manuscritos, papiros, códices, foram encontrados um número maior de variantes textuais. Trechos de um livro bíblico que apresentam variação no texto grego. Às vezes é uma letrinha a mais ou a menos, às vezes uma frase a mais, uma a menos. Uma sentença, que aparece em algumas cópias, e em outras não aparece. E aqui, é precisamente o caso”, explicou Fontana.
A explicação mais simples para essa diferença, segundo Fontana, é que “alguém errou ou adicionou essa passagem, e a versão com essa passagem se tornou extremamente popular, e passou a dominar as cópias e a gente passou a ter a Bíblia com esse versículo”.
A Bíblia é confiável?
Essas revisões com base nas descobertas arqueológicas de manuscritos mais antigos, como por exemplo no caso dos manuscritos do Mar Morto, são fruto de um estudo mais aprofundado e comparações com mais fontes. Assim, as versões mais atualizadas tendem a ter maior fidelidade com o texto saído da pena dos apóstolos:
“Agora, a gente tem mais convicção de como o texto era no momento em que ele foi redigido. Simples assim. […] O que a gente tem são muitas variantes textuais que evidenciam que a mensagem essencial do Novo Testamento foi preservada, e não corrompida”, avaliou Fontana.
Ao final de toda a polêmica, a presença ou ausência do versículo 21 no capítulo 17 de Mateus não significa que Jesus não tenha dito o que esse texto diz, já que a frase está parcialmente presente no evangelho de Marcos: “Esse tipo de espírito só pode ser expulso por meio de oração” (9:29 – versão NAA).
“Esse versículo existe, ele só não tem a questão do jejum. O jejum, aparentemente, foi acrescentado posteriormente mesmo”, resumiu Fontana, referindo-se a versões como a NVI, que trazem Marcos 9:29 com a menção ao jejum, que está presente no texto de Mateus. “As grandes doutrinas centrais sobre Salvação, a figura de Cristo, quem é Jesus, quem é Deus, a ortodoxia cristã, nenhuma foi corrompida por causa dessas variações entre pergaminhos, papiros e códices”, finalizou.
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