Consumido há pelo menos 300 anos por comunidades indígenas da Amazônia, antes de ser transportado para os rituais do Santo Daime, o chá alucinógeno originado da planta ayahuasca, foi por três anos a solução encontrada por Fábio Mota para os seus problemas de depressão e “elevar o lado espiritual”, como afirma o ex-praticante do daime que chegou a visitar a casa do cartunista Glauco Villas Boas, assassinado na semana passada junto com o seu filho por um frequentador da Igreja Céu de Maria, liderada pelo desenhista.
Mota passou a seguir a doutrina daime com poucos mais de 20 anos, convidado por um amigo. A busca por novas experiências espirituais o levou ao Amazonas, região onde o fundador do Santo Daime, conhecido como mestre Irineu, recebeu uma visão de Maria, mãe de Jesus, instigando-o a inaugurar a religião que prega o auto-conhecimento por meio de experiências ritualísticas. “Foi lá que eu me fardei – que é tipo um batismo. Eu voltei de lá já sabendo o que eu queria – o daime”, relembra.
Diferente de outras drogas, Fábio conta que a característica principal do chá do daime está justamente na fusão com o espiritual.
“Não é só como uma viagem de ácido, por exemplo, ou um chá de cogumelo, que mexe com a mente e a pessoa dá umas viajadas. Você vai para outro lugar mesmo, para o inferno, para o mundo espiritual. Você tem esse acesso até lá”, explica ao Guia-me.
A ruptura de Fábio Mota com a religião do Santo Daime aconteceu em 1996, após a conversão de seus pais ao Evangelho. A decisão de mudar o rumo de sua vida aconteceu num grupo de jovens da Igreja Renascer em Cristo, que anos mais tarde se desligaria da denominação de Estevam Hernandes para se tornar a Igreja Evangélica Bola de Neve.
Há quase quatro anos pastor da Igreja Bola de Neve de Caraguatatuba, litoral norte de SP, Fábio conta que hoje não precisa de nenhum artifício para ter uma vida sadia espiritualmente, preenchida exclusivamente por Jesus. “Na época do daime, eu parei de usar cocaína, porque não batia. Parece que você não consegue. Hoje eu enxergo, pelo lado espiritual, que o diabo te liberta de umas correntes e te aprisiona com outras. Você acaba ficando preso do mesmo jeito”.
Como você conheceu o Santo Daime?
Fábio Mota: Antes de ir para o Santo Daime, na verdade eu sempre gostei de “fumar um”, bastante maconha e ácido. Eu comecei a me interessar muito por viagem astral.
Quando eu soube que tinha uma religião, que você tomava um chá e dava aquela “despirocada” toda, eu já estava meio mal comigo mesmo. Sabe aquelas depressões, aquelas “vibes” que você não sabe o sentido da vida? Estava até meio que querendo morrer.
Aí eu soube da religião do Santo Daime. Um amigo meu começou a ir primeiro e me convidou. Eu acabei indo. Era em Itapecerica (SP), numa comunidade chamada Flor das Águas, que ainda existe.
Eu frequentava, mas sabe aquele “convertido meia-boca”, que vai aos cultos aos domingos mas na verdade não pega firme? Eu comecei assim. Ia de vez em quando, buscava o lado espiritual.
Mesmo indo na Igreja do Santo Daime, o que te fez se interessar em participar dos rituais na Amazônia, local onde começou a religião?
Fábio Mota: Quando eu tomava [o chá] era algo muito forte. Você realmente sai de si. É algo demoníaco mesmo. Com o passar do tempo eu vi que precisava de mais. Aí foi quando eu fui para a Amazônia, no Acre, e quando eu quis conhecer de perto como começou a seita. Eu quis me aprofundar mesmo. Eu fui para o Acre, onde começou o Santo Daime com o Irineu, que eles chamam de “mestre Irineu”. Eu também sempre gostei muito de mato.
Do Acre eu fui para o Amazonas, num lugar que se chama Céu do Mapiá. São dois dias de canoa para chegar até lá, é bem na floresta mesmo. Lá eu fiquei uns 40 dias. Foi lá também que eu me fardei – que é tipo um batismo – e comecei a usar as roupas. Aí então eu comecei a frequentar o daime já fardado. Eu voltei de lá já sabendo o que eu queria – o daime.
Quando eu entrei no Santo Daime, eu ia por saber que podia tomar o chá, mas não por uma viagem de loucura, como acontece quando você toma um ácido ou chá de cogumelo, mas para poder usar o chá e auto me conhecer. Ia para poder elevar o meu lado espiritual.
O Santo Daime é uma mistura de catolicismo, espiritismo, umbanda. Os trabalhos começam às seis da tarde e vai até às 6 da manhã do dia seguinte. Você toma o chá e cada um tem as suas viagens, para tentar se auto conhecer e se curar de alguma coisa. Inclusive esse rapaz que matou o Glauco, estava lá para tentar largar as drogas.
Eu cheguei a ir na casa do Glauco. Ele não era meu amigo, era mais do amigo que me levou para o Santo Daime.
Você chegou a conversar com ele?
Fábio Mota: Na época ele morava no Butatan, perto da USP. Eu fui algumas vezes lá, mas a gente não era próximo de ligar um para o outro. Não lembro exatamente o que falamos.
Um dos requisitos para fazer parte do Santo Daime é que não é permitido ser usuário de drogas, nem de bebida alcoólica. Isso é verdade?
Fábio Mota: Naquelas, né. A maconha, que é liberada, eles chamam de santa maria.
Quando você toma o chá de ayahuasca, é como se você conhecesse realmente quem você é. É algo muito louco. É sobrenatural quando você se depara com você mesmo.
Como era o seu “eu interior”?
Fábio Mota: Eu era deprimido, com um vazio muito grande. As vezes as pessoas não querem realmente saber como elas são, vivem como se tivessem uma máscara. Quando você ministra alguém, aconselha alguém e fala a verdade, muitos se sentem machucados.
Muitas vezes, quando eu tomava o chá naquela época, eu me deparava comigo mesmo. Eu via quem realmente eu era. Eu não era aquela pessoa que eu fingia que eu era, aparentemente feliz. Com o tempo, eu fui me aprofundando e frequentando mais.
Quando você frequentou o daime, a santa maria era utilizada durante os rituais?
Fábio Mota: A maconha, santa maria, foi liberada pelo padrinho Alfredo quando ele recebeu uma visão da Maria [mãe de Jesus]. Ela disse para ele que podia fumar. Foi aí que começou a poder fumar. Todos usam a maconha, que eles chamam de santa maria. Eles fumam mesmo. Quando eu estava no Acre, na floresta, eram desde os velhinhos até todo mundo fumando. É liberado durante as reuniões, mas não no momento do chá.
Aqui em São Paulo não se usa tanto porque eles ficam com medo da polícia, de repente tem alguém infiltrado. Numa época que estava havendo perseguição, eles proibiram a maconha nos rituais. Mas lá no Amazonas, pelo menos, que é tudo no meio da floresta, é tudo liberado. Você sai, fuma e volta.
Você disse que se deparava com você mesmo nessas viagens com o chá da ayahuasca. Mas como eram essas viagens? Eram sempre boas?
Fábio Mota: Eram várias viagens, desde boas até ruins. Uma vez eu tomei e quando eu abri os olhos eu estava num lugar escuro e quando olhei para mim eu me vi em forma de uma espécie de nuvem, sabe? Era só um espírito, algo que não tinha matéria. Aí veio uma outra na minha direção. Aí eu me assustei e tentei me soltar dessa outra “energia”. Aí ele veio na minha direção e eu me afastei. Aí um rapaz bate nas minhas costas e eu volto para onde eu estava. Eu acordei, abri os olhos e ele me disse: “- Pô, meu! Você quer brigar comigo no astral?”. Ele e eu e estávamos num outro lugar.
Essa viagem você classificaria como boa ou ruim?
Fábio Mota: Nem boa, nem ruim. Eu fiquei com medo na hora. Era como uma viagem astral, quando o espírito sai do corpo. O meu corpo estava na sessão, e o meu espírito estava num outro lugar. Eram várias situações iguais a essas em que você entrava num lugar com um monte de corpos. O seu espírito realmente sai do corpo. Não é só como uma viagem de ácido, por exemplo, ou um chá de cogumelo, que mexe com a mente e a pessoa dá umas viajadas, vê tudo retorcido, o chão balançando. Além de mexer com o inconsciente, eu creio que ele abre uma porta no mundo espiritual. É como um portal com entrada de demônios. Você vai para outro lugar mesmo, para o inferno, para o mundo espiritual. Você tem esse acesso até lá.
Como foi a sua conversão ao Evangelho?
Fábio Mota: Eu comecei a fazer faculdade de agronomia, no interior de São Paulo. Eu recebi uma Bíblia daquelas que tem só Novo Testamento e Salmos. Deus começou a falar muito comigo através daquela Bíblia. Aí teve um final de semana, que era dia de um santo que não me recordo qual era, que eu fui para São Paulo num trabalho desses.
Eu estava lá e já não estava me sentindo bem, meio deslocado. Já tinha tomado o daime, mas não estava me sentindo muito bem com aquela situação toda. Quando eu olho, eu vejo um demônio, na época ainda não sabia que era um demônio. Era uma nuvem preta me rodeando. Começou a me rodear, rodear, rodear. Aí ele parou e começou a olhar para mim no meu olho. Na hora eu falei: Jesus! Quando eu falei isso, ele foi embora. Aí eu tentei continuar no trabalho, mas já não conseguia. O meu carro estava parado próximo e eu fiquei dentro do carro até o final do trabalho por que tinha uns amigos meus que estavam lá e eu ia dar carona para eles, senão já teria ido embora para casa.
A partir daí eu também não voltei mais. Aí se passaram mais ou menos seis meses. Quando eu voltei de férias da faculdade, foi quando eu me converti na Igreja Renascer. Os meus pais já tinham se convertido nesse tempo.
É algo muito forte. O ácido que eu já tomei, chá de cogumelo, dessas viagens todas, o chá do daime é algo que não chega perto desses tipos de drogas. Ele abre uma porta para o espiritual e que te deixa mal mesmo.
Você passou por alguma triagem para poder fazer parte das reuniões?
Fábio Mota: Não. Como eu já cheguei com esse amigo meu que já tinha começado a ir, ele já conhecia um pessoal do meio também.Eu cheguei na verdade com todo mundo. Não teve triagem nenhuma.
Você tomava o chá só nos rituais?
Fábio Mota: Era principalmente nos rituais, mas eu cheguei a tomar fora também.
No tempo que você estava no daime, você usava outras drogas também, além da Santa Maria?
Fábio Mota: Na época do daime, eu parei de usar cocaína, porque não batia. Parece que você não consegue. Hoje eu enxergo, pelo lado espiritual, que o diabo te liberta de umas correntes e te aprisiona com outras. Você acaba ficando preso do mesmo jeito.
Como era lidar com a realidade quando você voltava do transe?
Fábio Mota: Depois da loucura do daime, eu sentia muita paz.Você ficava com o corpo leve e muito tranqüilo. O pós-daime era uma situação muito boa.
Segundo psiquiatras, nos primeiros efeitos do chá você sente um relaxamento. Com você era assim?
Fábio Mota: Quando abre o trabalho, você toma um pó. Aí não bate tanto. Quando você toma o segundo, depois de um intervalo de meia hora em que você fuma uma santa maria, come uma fruta, fica conversando, e ai volta o trabalho de novo e você toma outro. Aí é quando começa realmente a loucura toda. Numa reunião você toma metade de dois a três copos daqueles de café.
Os efeitos do chá eram imediatos ou demorava para acontecer as “viagens”?
Fábio Mota: Demora um tempinho, por volta de 1 hora. Começam as músicas, você fica lá dançando, até vir a loucura do daime. Mas esse tempo depende de cada um também.
O Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) descartou a hipótese de dependência da droga, se ingerida somente nos rituais a cada 15 dias. Hoje você considera que era um dependente do chá?
Fábio Mota: Dependente do chá eu não era. Eu era dependente químico de maconha, numa época de cocaína. Eu nunca tive problemas com o chá. Mas eu sei que o diabo tem utilizado formas e formas para aprisionar as vidas. Essa é mais uma delas.
Eu creio que até essa morte do Glauco, queira ou não, foi uma forma para quem não conhecia o chá, passar a conhecer. Eu creio que muitas pessoas vão querer conhecer o Santo Daime por causa disso. Foi muito divulgada a doutrina. O interesse de muitas pessoas vai aumentar.
Você acredita que se comprovado que o rapaz tinha problemas psiquiátricos que foram desencadeados pelo chá do Santo Daime, pode haver uma nova avaliação do Brasil sobre a regulamentação do uso do chá?
Fábio Mota: Eu creio que sim, se for comprovado que a culpa foi do chá. Eu vi nos telejornais nessa semana que tiveram alguns outros casos, que um jovem se matou e a família está acusando o Santo Daime.
Os especialistas dizem que o chá não provoca violência nos usuários. Você chegou a presenciar algum surto de violência?
Fábio Mota: Realmente, pelo que eu vivi nesse tempo, o chá não causa momentos de violência. A pessoa fica realmente tranquila. O corpo leve e cada um tendo a sua viagem. Nunca vi alguém se exaltar por causa do chá.
Se a pessoa já tem um problema psicológico, de repente o daime pode vir a causar alguma coisa. Só mesmo os médicos para dizer isso.
O porquê desse rapaz ter matado o Glauco, eu creio que ele já tinha um distúrbio há muito tempo de droga e loucura. Ele na verdade estava seguindo o mesmo caminho da mãe.
Fonte: Guia-me / Gospel+