O jornalista Marcelo Carneiro da Cunha criticou o vínculo entre a religião e o futebol, evidenciado pelos jogadores brasileiros que se declaram evangélicos.
O artigo, publicado na coluna “Zagueiro”, do portal Terra, cita os gestos de agradecimento a Deus feitos pelos jogadores como algo desnecessário, mas não menciona o gesto que simboliza a cruz, feita pelos jogadores católicos.
De acordo com Cunha, as manifestações religiosas prejudicam o esporte: “Religião atrapalha, caros leitores? Olhando para o futebol que acontece no Brasil de hoje, tendo a achar que sim, e não pela parte espiritual da coisa, mas pela ausência dela”, escreveu.
Cunha destaca que os jogadores de futebol entram no jogo por suas habilidades, não por interferência divina: “Não sei o que vocês sentem na hora em que mais um jogador brasileiro entra em campo de mãozinha pro céu agradecendo ao pastor, ao bispo e ao apóstolo por não se sabe bem o que. A saber, ele está ali porque joga bola, mais do que muitos outros, e o treinador resolveu que aquela é a hora de ele substituir alguém. Não são forças metafísicas, mas bastante terrenas”.
A Seleção Brasileira que disputou a Copa do Mundo na África do Sul em 2010 também foi alvo de críticas do jornalista, pela presença dos evangélicos no time: “Nenhuma seleção foi mais assolada por esse movimento pentecostal que assola o futebol brasileiro do que a do Dunga, com muita reza no vestiário e futebol sofrível em campo, representado em sua leveza pelo bispo Felipe Melo”, criticou.
Confira abaixo a íntegra do artigo “Religião demais no grande vestiário brasileiro”, do jornalista Marcelo Carneiro da Cunha:
Estimados leitores, não sei o que vocês sentem na hora em que mais um jogador brasileiro entra em campo de mãozinha pro céu agradecendo ao pastor, ao bispo e ao apóstolo por não se sabe bem o que. A saber, ele está ali porque joga bola, mais do que muitos outros, e o treinador resolveu que aquela é a hora de ele substituir alguém. Não são forças metafísicas, mas bastante terrenas – ainda mais levando em conta os treinadores brasileiros -, que estão em ação.
Fico pensando que a última vez em que a gente teve um grande time foi aquele Brasil de 82, onde ninguém, onde quer que eu olhe e em especial se olhamos para Sócrates, tinha vocação pra santo.
Religião atrapalha, caros leitores?
Olhando para o futebol que acontece no Brasil de hoje, tendo a achar que sim, e não pela parte espiritual da coisa, mas pela ausência dela. Espiritual era aquele time de 70, com o Gerson fumando feito chaminé, e Rivelino dando dibre em quem passasse pela frente. Nosso futebol hoje se afasta da arte no caminho firme do artesanato, bonitinho, no máximo, e igual. Nosso futebol de hoje é parecido com as belezas que a gente vê em restaurante à beira de estrada, junto com goiabada cascão e lembranças de Itu.
Foi o pastor que deixou o pessoal assim?
Nenhuma seleção foi mais assolada por esse movimento pentecostal que assola o futebol brasileiro do que a do Dunga, com muita reza no vestiário e futebol sofrível em campo, representado em sua leveza pelo bispo Felipe Melo. A atual seleção, do Mano, não se parece com nada que eu tenha visto antes sobre a Terra, e seu único sinal reconhecível é o cabelo indescritível do Neymar.
É com isso que vamos?
No Brasil dos anos 80, quando começa a mudança que nos traz ao sistema atual, o futebol virou grande negócio, mesmo que tocado pelas mesmas forças anacrônicas de sempre, o que quase serve de descrição para o país como um todo. Nesse grande negócio, jogadores, especialmente por terem agentes e representantes que ganham com isso, passaram a valer muito, e, portanto, a ganhar muito dinheiro.
Meninos pobres, dotados subitamente de recursos significativos, novinhos e de miolo mole, equipados com um discurso robotizante e uma vida idem, se tornam o que vemos. Pessoas sem face, com algum ou muito talento, deslizando para lá e para cá, ao sabor do contrato atual, mas sem uma lógica maior que aplique esses recursos em uma cultura futebolística vencedora.
Isso que eu falo descreve o que vocês assistem, ou não?
Na política isso equivale ao que vemos num partido como o PR, de um Garotinho, de um Magno Malta, de um Alfredo Nascimento, de um Aurélio Miguel, agora acusado de jogo pra lá de irregular aqui em São Paulo. A feiúra assume muitas formas, não é mesmo? No futebol temos isso, o que era colorido e rico, dotado de uma capacidade enorme de superar suas próprias deficiências, se torna uma indústria, onde jogadores são insumos e os patos somos nós, não os patos.
Na Copa, esse conjunto de transforma numa incrível soma que celebra não o nosso melhor, que existe e está por aí, mas o nosso pior. Vamos gastar muito, gastar mal, deixar de construir coisas essenciais para construir coisas desnecessárias, e, colocando em campo nossos andróides e sua ideologia confusa baseada em uma versão da bíblia, vamos mais uma vez dar vexame, querem apostar?
Dos outros lados você vê movimentos como o da Alemanha, mudando radicalmente a sua forma de fazer as coisas em campo, com um time culturalmente diverso e futebolisticamente concentrado em vencer bonito. Temos a Espanha, que conseguiu transformar as suas deficiências – falta de agudeza na frente – em virtude. Temos Portugal, criando exuberâncias onde havia um fado. A Argentina recentemente parece ter relembrado para que serve o dulce crema de leche que leva no sangue, para nosso azar.
Em nenhum desses times, dessas culturas, eu vejo peças sendo substituídas e sendo todas assustadoramente iguais.
É isso que estamos nos tornando, estimadíssimos leitores? Um país que sempre teve na sua desordem o seu progresso, agora impõe essa ordem idiotizante como norma?
Nossa música era o que era porque o morro era o que era, e o asfalto tinha de onde tirar a sua intensidade, adicionando contenção e o rostinho bonito do Tom Jobim. De onde vem agora o caldo para engrossar a sopa? De coisas como Michel Teló e Los Hermanos?
Sofremos, eu acho, um processo de uniformização, a partir de idéias simples o bastante para serem repetidas sem que representem coisa alguma. Assim, estimados leitores, se vai até a esquina, não se consegue sequer dobrar a esquina para ver o que existe de alternativa. Assim, os lemingues, aqueles ratinhos da tundra, se jogam no mar, apenas por não conseguirem pensar em alternativas.
Aqueles jogadores, mãozinha pra cima e dízimo em dia, me lembram disso, estimados leitores. Lemingues, entrando em campo e indo a lugar nenhum.
Esse zagueiro que os atormenta, que isso fique claro, é contra.
Fonte: Gospel+