Um pastor norte-americano de Nova Jersey, apoiado por um ex clarividente britânico, administra uma rede que vem oferecendo uma “cura milagrosa” a 50 mil ugandenses. O problema é que a tal água é feita de alvejantes industriais. Ele alega que beber o líquido tóxico erradica o câncer, o HIV/Aids, a malária e a maioria das doenças comuns.
A rede, liderada pelo pastor Robert Baldwin e parcialmente financiada pelo ex clarividente Sam Little, de Arlesey, no condado de Bedfordshire, na Inglaterra, é um dos maiores esforços para distribuir a “cura milagrosa” conhecida como MMS, ou “solução mineral milagrosa”.
O jornal The Guardian descobriu que os pobres ugandenses, incluindo crianças de até 14 meses de idade, recebem dióxido de cloro, um produto que não tem benefícios de saúde conhecidos e pode ser extremamente perigoso.
Baldwin, de 52 anos, está importando remessas a granel dos componentes de MMS, clorito de sódio e ácido cítrico para a Uganda, provenientes da China. Os dois produtos químicos são misturados para produzir dióxido de cloro, um poderoso alvejante usado na indústria têxtil.
O pastor americano “treinou” cerca de 1.200 líderes religiosos em Uganda para administrarem a “cura milagrosa” e cada um por sua vez a usa para tratar cerca de 50 fiéis, geralmente depois do culto de domingo. Como incentivo, Baldwin está oferecendo smartphones para os pastores que estão especialmente “comprometidos” em espalhar a cura do alvejante.
Baldwin opera sob um ministério que ele fundou chamado Global Healing (“cura global”, em tradução livre). A “igreja” se anuncia como um ministério que está “usando o poder do Deus Todo-Poderoso […] para reduzir muito a perda de vidas” na África.
No entanto, em uma conversa por telefone com Fiona O’Leary, uma ativista contra o curandeiro que conversou com ele enquanto era jornalista freelancer, Baldwin disse que distribuía o alvejante pelas igrejas para “ficar longe do radar”.
“Não queremos chamar atenção”, disse ele durante a ligação, que foi gravada. “Quando você chama a atenção para o MMS, corre o risco de se meter em problemas com o governo ou empresas farmacêuticas. Você tem que fazer isso com uma chave baixa. É por isso que eu montei através da igreja”.
Ele acrescentou que, como precaução, ele usa eufemismos no Facebook, onde ele arrecada dinheiro através de doações online. “Eu não chamo isso de MMS, eu chamo de ‘água de cura’, para me proteger. Eles são muito sofisticados. Facebook tem algoritmos que podem reconhecer ‘MMS’”.
Baldwin, que treinou como estudante de enfermagem e não tem nenhuma outra especialidade médica, disse que escolheu Uganda porque era um país pobre, com pouca regulamentação. Falando de Nova Jersey, onde ele está baseado, ele detalhou mais de sua prática na conversa com Fiona O’Leary: “A América e a Europa têm leis muito mais rígidas, então você não é tão livre para tratar as pessoas porque é tudo controlado pela FDA. É por isso que eu trabalho nos países em desenvolvimento”.
Ele acrescentou: “Essas pessoas nos países pobres não têm as opções que temos nos países mais ricos – elas estão muito mais abertas a receber as bênçãos que Deus lhes deu”.
Perguntado como bebês e crianças foram tratadas com MMS, ele disse que a dose foi reduzida pela metade. “Pequenos bebês podem pegar uma pequena quantidade, eles vão cuspir. Não causa nenhum dano – eles só têm diarréia”.
O Guardian contatou Baldwin por telefone em Nova Jersey e pediu ao pastor que explicasse seu trabalho em Uganda. Ele disse: “Usamos terapias de cura natural para ajudar as pessoas – isso é algo que os cristãos fazem”, e em seguida, desconversou: “Eu não acho que seja uma boa ideia estar falando com a mídia agora”. Perguntado que doses de alvejante ele estava usando na África , ele terminou abruptamente a chamada.
“Orfanato de Sam”
O MMS é proibido em vários países, incluindo o Canadá e a Irlanda. No Reino Unido e nos EUA, ele é estritamente controlado e já levou pessoas e empresas a processos de fraude.
A Food and Drug Administration (FDA) dos EUA emitiu um alerta público que aconselha qualquer pessoa com MMS a “parar de usá-lo imediatamente e jogá-lo fora”. Várias pessoas ficaram doentes com o produto químico, diz a FDA, sofrendo de náusea, diarreia e, potencialmente, “baixa pressão arterial com risco de vida causada por desidratação”.
A crescente rede MMS do pastor Baldwin em Uganda parece envolver a distribuição gratuita da água sanitária. Não está claro como o dinheiro é levantado para pagar por isso. Há páginas de captação de recursos no Facebook, embora as somas de dinheiro doadas pareçam pequenas.
O empurrão inicial para o uso de MMS foi parcialmente bancado por Sam Little. Com 25 anos, o britânico está atualmente em Fort Portal, no oeste de Uganda. De acordo com sua página no Facebook, Little frequentou a Universidade de Staffordshire antes de se estabelecer como um clarividente com um negócio chamado Psychic Sam, que agora foi extinto.
Postagens de 2015 no Facebook mostram que ele oferece leituras de tarô, “curas” e “terapia de regressão” por £ 6,99 (R$ 36,00). Ele declarou que também ganhou dinheiro através de “investimentos” e estava usando suas economias para ajudar a financiar a distribuição de MMS em Uganda com uma doação de US$ 10 mil. Separadamente, ele também investiu US$ 30 mil na construção de uma casa para cerca de 20 crianças sem-teto ugandenses.
Ele chama a casa de “orfanato de Sam” no Facebook, onde ele está tentando arrecadar dinheiro através de doações para completar o prédio. Ele disse que o projeto era um empreendimento separado de seu trabalho com o tratamento com água sanitária e ele insistiu que não tinha intenção de tratar as crianças em seu orfanato com MMS.
Little foi apresentado pela primeira vez à “cura milagrosa” na Inglaterra por um amigo. “Alguém da minha família foi curado de câncer com MMS”, disse ele. “Comecei a pesquisar online e vi mais e mais vídeos de pessoas sendo curadas. Foi quando decidi testá-lo sobre malária e viajar para a África”.
Ele postou um vídeo de uma viagem que ele fez em 11 de março a um hospital da vila no distrito de Kyenjojo, no oeste de Uganda, onde ele conduziu um teste que provaria que a malária poderia ser curada com dióxido de cloro em duas horas. Embora ele não tenha treinamento médico, o britânico é visto no vídeo instruindo os trabalhadores de um minúsculo hospital local a administrar o alvejante de acordo com a fórmula: 18 gotas para adultos, 12 para crianças entre cinco e 12 anos e oito para crianças de um ano para quatro.
O vídeo mostra nove pessoas recebendo duas doses do fluido, incluindo um bebê com cerca de 14 meses de idade que grita nos braços de sua mãe enquanto ele bebe. Pequenos exames de sangue realizados por um técnico de laboratório mostraram sinais microscópicos de malária desaparecendo dentro de duas horas.
Sam Little disse que um técnico de laboratório examinou amostras de sangue das nove pessoas locais que estavam sendo testadas e disse que elas haviam sido curadas. O próprio Little não voltou ao hospital para verificar os resultados.
Ele afirmou que estava repetindo o estudo sobre pacientes com HIV/Aids em vários locais em Uganda, para provar que o MMS também era uma cura para essa doença. Ele admitiu que não teria permissão para conduzir tais “estudos de campo” no Reino Unido ou nos EUA, mas quando perguntado se estava usando ugandenses pobres como cobaias, respondeu que não estava fazendo nada disso por dinheiro, mas simplesmente por motivos altruístas.
“Não estou usando pessoas como cobaias para testes, estou ajudando. Nós curamos muitas pessoas não apenas por malária, câncer, HIV, todo tipo de coisa”, garantiu.
Solicitado a citar qualquer evidência científica de que o MMS curou doenças, ele apontou para um estudo de 2018 no qual o dióxido de cloro foi testado em 500 pacientes com malária em Camarões. O principal autor do estudo foi Enno Freye, da Universidade Heinrich Heine, em Düsseldorf, na Alemanha.
A universidade informou que sua faculdade de medicina havia revisado o estudo e considerado “cientificamente inútil, contraditório e, em parte, eticamente problemático”. Em fevereiro, Freye foi destituído de seu título de Professor-Apl da faculdade, alegando que ele havia “danificado seriamente a respeitabilidade e a confiança que este título requer”. Ele não trabalha mais em nenhuma instituição da universidade.
O Ministério da Saúde de Uganda ficou alarmado ao ouvir sobre os testes MMS, dizendo que não tinha informações sobre o dióxido de cloro sendo testado em hospitais ugandenses. Emmanuel Ainebyoona, porta-voz do ministério, disse que uma investigação do governo foi iniciada: “Estamos investigando as atividades dessas pessoas. Na profissão médica, você não faz publicidade quando você cura pessoas”, disse ele, referindo-se ao vídeo de Little em que ele afirma ter curado a malária em duas horas.
O ministério de gênero e desenvolvimento social de Uganda, que examina e aprova todos os novos orfanatos, disse que também está lançando um inquérito sobre os planos de Little para um lar para 20 crianças. “Nunca recebemos documentos do Fort Portal mostrando a necessidade de um orfanato”, disse uma autoridade sênior. “Essa é uma nova informação para nós”.