Manoel Isidório de Santana Junior é o nome de batismo do polêmico pastor Sargento Isidório (Avante), eleito deputado federal mais votado da Bahia, e conhecido por se autorrotular como ‘ex-gay”. Ele foi tema de uma extensa reportagem sobre sua história de vida, origens e atuação social, além de seu ministério como sacerdote na Igreja Assembleia de Deus.
Recentemente, o pastor Sargento Isidório se envolveu numa polêmica com a cantora baiana Daniela Mercury, ativista LGBT. O imbróglio começou com declarações agressivas da artista sobre os cristãos evangélicos, e ganhou ares de baixaria com a resposta dada pelo líder pentecostal nordestino.
No início de seu mandato, há pouco mais de um mês, o parlamentar protocolou um projeto de lei que visa proibir o uso da palavra “Bíblia” em publicações não cristãs, ao mesmo tempo em que apresentou uma segunda proposta que tem como objetivo transformar o livro sagrado do cristianismo em patrimônio cultural imaterial.
Na reportagem da revista Época, Sargento Isidório enfatiza que a homossexualidade é um pecado, conforme apontado pela Bíblia Sagrada, e segundo sua interpretação, a prática é tão grave quanto roubar ou matar. “O pior pecado é a negação da espécie, porque homem com mulher vem filho. Homem com homem não vem nada”.
Confira trechos da matéria de Ana Clara Costa:
“Frases como essas são proferidas pelo deputado — o mais votado da Bahia, com 323 mil votos — sem qualquer lustre politicamente correto, seja em suas lives no Facebook, em suas pregações (ele é pastor da Assembleia de Deus) ou em seus discursos no plenário da Câmara. Um de seus projetos, apresentados nos primeiros dois meses de mandato, é a criação do “Dia do Hétero”, no intuito de fazer frente à tendência que avalia existir no mundo de premiar o indivíduo que é homossexual. Isidório se autoproclama ex-gay e prega que a homossexualidade é uma escolha — e que se dá por três vias: pelo que ele chama de “safadeza”, que significaria ceder aos desejos sexuais mais “profanos”; pelo estímulo da “mídia”; ou porque pais e mães, no período da gravidez, desejaram um bebê de gênero contrário ao do nascimento do filho. O pastor não diferencia gênero de sexualidade. Ele também defende que a reparação à discriminação histórica de minorias não seja concentrada apenas nos gays. “Os negros, por exemplo, ainda não têm reparação. Negro não escolhe ser negro. Já a questão sexual é uma escolha”, arrematou o deputado”.
“[O pastor] não esconde seu passado. Usa-o como combustível para as pregações que faz diariamente na Fundação Doutor Jesus, projeto social de tratamento de dependentes químicos que fundou em Candeias, Região Metropolitana de Salvador, há 27 anos e para o qual recebe repasses de dinheiro do governo da Bahia. Filho de um lar desfeito — a mãe, dona Maria José, costureira, foi abandonada pelo pai, seu Maneca, funcionário da Petrobras —, aos 6 anos Isidório começou a sofrer abuso de um primo que eventualmente aparecia em sua casa e dormia em seu quarto. O primo era cabo do Exército. Os abusos perduraram até Isidório ter cerca de 12 anos. Aos 16, ele conseguiu o primeiro emprego de carteira assinada, como cobrador de ônibus. A liberdade financeira, diz ele, conduziu-o para os excessos. Largou os estudos, a igreja batista que frequentava, passou a beber, fumar e usar drogas. Foi também nesse período que passou a se relacionar com homens, numa rotina que ele classifica como promíscua e que perdurou para além de seus 30 anos. Hoje ele tem 56”.
“Quando se lançou na política estadual, em 2001, era um típico representante de corporação, defendendo os interesses de policiais nas greves da PM que ocorreram em alguns estados e que suscitaram até mesmo o esboço de um plano de intervenção militar por parte do governo. Ao ser preso durante um protesto, foi deixado próximo a um depósito de produtos químicos que causaram uma intoxicação que o levou à UTI e afetou suas cordas vocais. As greves lhe deram a notoriedade que terminou por elegê-lo pela primeira vez deputado estadual em 2002. Quem o conhece daqueles tempos não vê qualquer relação entre sua postura de então e o fundamentalismo religioso do presente. ‘Não se falava que ele era ex-gay ou ex-drogado. Ele era simplesmente uma liderança corporativista em formação. Não havia qualquer componente religioso no discurso’, disse uma liderança política baiana que o conhece desde aquela época”.
“Ao mesmo tempo que se relacionava com homens durante a juventude, Isidório mantinha duas mulheres, com as quais teve sete filhos. Cada uma vivia em um extremo de Candeias, numa espiral de pobreza agravada pelo vício do companheiro. Depois de trabalhar como cobrador, Isidório foi contratado como auxiliar administrativo em uma empresa que prestava serviço para a Superintendência de Desenvolvimento Industrial e Comercial (Sudic) do governo da Bahia. O posto ficava na BR-324, que corta a Região Metropolitana de Salvador. Por conviver com frequência com policiais rodoviários, conta ter se maravilhado com as botas usadas pelos oficiais. Perguntou-lhes certa vez como fazer para ter uma igual. Recebeu como resposta: ‘Vire policial, mas não creio que a corporação aceite doidos’. Isidório então passou no concurso para policial militar, mas ficou frustrado quando descobriu que só teria direito às botas se passasse na prova para policial rodoviário. E foi o que fez. Atribui o sucesso em concursos ao excesso de vagas e não a seu desempenho acadêmico, já que não conseguiu completar sequer o ensino fundamental”.
“Conciliar a boemia, as drogas e os relacionamentos homossexuais com a vida na polícia não era difícil, disse o deputado, que assegurou que sua família sabia de seu vício em álcool, mas não das drogas nem das incursões gays. Isidório emendava semanas, por vezes meses sem aparecer em casa. Quando visitava a mãe, ouvia reclamações de que trabalhava demais. A conduta nunca o fez sofrer retaliações no trabalho. Fardado, comportava-se como Isidório, o sargento. Na vida homossexual, preferiu não revelar se os parceiros eram também do quartel. ‘Não vale a pena relatar, porque essas pessoas, assim como eu, se transformaram’, contou. No período de maior convívio com a criminalidade soteropolitana, chegou a planejar assaltos com marginais, mas disse nunca ter consumado os atos. Isidório também afirmou nunca ter se apaixonado por um homem, apesar de tantos anos levando uma vida dupla. Disse que só teve relações homossexuais quando estava bêbado — o que era, basicamente, seu estado permanente fora do quartel até os 30 anos, período de sua transformação”.
“No início da década de 90, Isidório contou, escorou-se em um poste, maltrapilho, quase sem andar e sem falar, supostamente infectado pelo vírus HIV — ainda que jamais tenha feito exame para comprovar a existência da doença. Foi quando avistou um grupo de evangélicos entoando cânticos em uma praça de Candeias. Ele disse ter sido chamado pelo grupo e que, ao ouvir a música, começou a chorar. O momento de epifania espiritual teria virado uma chave em seu organismo. Entrou Deus e saiu a vontade de beber, se drogar e transar com homens — ou “dar o furico”, como ele prefere dizer, inclusive durante suas pregações. Ele explicou o que sentiu valendo-se do Salmo 103. ‘Ele é o que perdoa todas as tuas iniquidades, que sara todas as tuas enfermidades’. Dali em diante, como novo fiel da Assembleia de Deus, a vida de Isidório mudou. Reatou com Elza, sua primeira mulher, pois recebeu a ‘mensagem divina’ de que só ela teria forças para aguentar o que estava por vir. Ele seguiu a orientação — e Elza, uma mulher morena, de cabelos lisos e feição zangada, aceitou-o de volta. ‘Sou ex-gay, restaurado. Sou a testemunha viva de que a cura existe’, disse”.
“Isidório atribuiu a ideia de criar um centro de recuperação de viciados a um ‘chamado de Deus’. Enquanto ainda se recuperava do vício, levava jovens envolvidos com o tráfico para dentro de sua casa, no intuito de curá-los com a Palavra, que é como ele se refere ao texto da Bíblia. Longe das drogas, passou a ocupar um terreno baldio localizado na BR-324 que anos depois se tornou seu. No espaço que hoje tem 100 mil metros quadrados, negros e pardos se aglomeram num programa rudimentar de cura que envolve duas premissas básicas: disciplina militar e oração. Ali, Isidório, sua família e seus ‘arcanjos’ — os ex-internos que ascenderam na hierarquia da fundação — dão ordens como num quartel e orientam fiéis como numa igreja. O ambiente é familiar porque o local é, de fato, a casa de toda a sua família desde a década de 90”.
“A Fundação Doutor Jesus tem uma sede e duas filiais — todas em Candeias — e abriga mais de 1.350 dependentes químicos, dos quais 120 são mulheres, que recebem abrigo, alimento, tratamento psicológico e recreação gratuitos. Os internos — que, em alguns casos, além de drogados, são homicidas, ladrões ou jurados de morte pelo tráfico — têm em sua maioria olhar perdido, dentes faltantes e cicatrizes pelo corpo, em decorrência, sobretudo, do uso de crack. O governo da Bahia financia 565 internos da fundação. Na quadra da sede, há faixas de agradecimento ao ex-governador e hoje senador Jaques Wagner (PT) e ao atual chefe do governo, o petista Rui Costa — que Isidório não deixa de elogiar, mesmo dizendo que os repasses estão atrasados em dois meses. Trata-se, hoje, do principal centro de tratamento de viciados da Região Nordeste, que, apesar de ter começado na informalidade, recebe cerca de R$ 10 milhões ao ano da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do estado da Bahia. O governo do estado afirmou, em nota, que os repasses são anuais, não mensais”.
“’Aqui só tem filho desobediente. Só entra por esse caminho quem desobedece a pai e mãe’. Assim começa o sermão de Isidório aos internos da sede da fundação, nos encontros que promove quatro vezes por semana em um dos galpões do local. Sua pregação costumava ocorrer todos os dias até a rotina parlamentar em Brasília inviabilizar o cronograma. Mas, com ou sem sua presença, todos os internos são obrigados a comparecer três vezes ao dia ao sermão, ora conduzido por Isidório e seus filhos, ora por ex-viciados que viraram funcionários. O deputado se refere aos cultos como ‘encontros’, argumentando que são sessões ‘espirituais’, não evangélicas. Não há, contudo, nenhuma diferença entre o discurso proferido ali e o de qualquer outro ministério da Assembleia de Deus”.
“De camiseta, bermuda e descalço, Isidório apresenta uma performance no palco que arranca risos dos presentes. Ao pregar os males da desobediência, mostra aos internos uma série de facões e porretes, cada um com um nome bíblico, ameaçando usá-los em caso de transgressão. Trata-se de uma brincadeira que já rendeu denúncias de maus-tratos pelo Ministério Público do estado da Bahia, mas que nunca prosperaram. Ele disse que a performance faz parte do personagem que criou para si: ao personificar um sujeito desequilibrado, visa mostrar aos internos que, se ele se recuperou, todos podem se recuperar também. Afirmou ainda que o personagem, ora ‘louco’, ora autoritário, existe para impor respeito”.
“Isidório dramatiza sua própria história, por vezes em tom cômico. Ao relatar o período em que se relacionou com homens, amarra a camiseta no alto do torso, diminui o comprimento da bermuda, emula trejeitos de mulher e canta, arrancando risos da plateia. Em seguida, inicia a pregação de como é errado ser gay. Começa por dizer que não é contra. Que, fora de sua fundação, todos têm o direito de fazer o que quiserem. ‘Se ser gay fosse bom, eu estava gay até hoje’, diz, em meio a gritos de ‘Glória a Deus de alguns presentes. ‘A Bíblia diz que Deus criou macho e…?’, pergunta. Todos respondem: ‘fêmea’. ‘Homem e…?’, volta a questionar. ‘Mulher’, devolve o coro de 1.300 internos. ‘Se o cara quiser se vestir de mulher, ele pode. Ele só não vai ser mulher. Se a mulher diz que é homem porque se veste de homem, não vai ser homem nunca. Mulher veio com xoxota, homem veio com chibata. E acabou’. Para dar chancela ecumênica ao discurso, Isidório alega que tal defesa está na Bíblia católica, na evangélica, nos grupos tradicionais de candomblé e no espiritismo”.
“Isidório calcula que mais de 80% dos internos sejam viciados em crack. Tanto que, para onde quer que se olhe, há cartazes que estampam que o crack é igual ao suicídio. Contudo, disse não prover tratamento com medicação: apenas disciplina, atendimento psiquiátrico, psicológico, comida e ‘a Palavra’”.
“A falta de um lar estruturado é, segundo o pastor, a principal causa da entrada no mundo das drogas entre os internos da fundação […] Isidório negou que sua fundação promova a ‘cura gay’. Mas, já em seu primeiro contato com a reportagem, ainda em Brasília, na Câmara dos Deputados, afirmou ser comum gays serem admitidos e, ao deixarem o local após o tratamento, se dizerem ‘curados’. ‘Ele chega lá para se recuperar da droga. Mas tem homem que chega de cabelo comprido, vestido de mulher, falando fino. E eu digo: abre a braguilha que vou lhe mostrar que você não é mulher. Já ela chega de cabelo cortado, cueca, calça, camisetinha de macho. Eu digo: você vai para o alojamento das mulheres’, relatou. Em alguns casos, ele contou, ao final de nove meses, a conduta sexual muda. ‘Há alguns que chegam lá e dão certo. Se organizam, cortam o cabelo, se ajeitam. Se depois voltam para sua prática, é problema deles. Mas há mulher que chega de cabelo raspado e sai bonita, vestida de sainha, normal. Tem até meninas que chegam lésbicas e depois se casam com homens. Ou então travestis que colocam silicone e, depois de um tempo, a própria mão de Deus diminui, ajuda nas deformações que eles fazem com eles mesmos’, explicou”.
“Isidório, sempre eleito apoiando causas da bancada progressista baiana, passou pelo PT, PSC, PSB, Pros, PDT e Avante, mas direcionou seu discurso, no decorrer dos anos, para a pauta religiosa como forma de atrair fiéis e eleitores. Em 2018, apoiou Cabo Daciolo para a Presidência no primeiro turno e o petista Fernando Haddad no segundo, contra a orientação dos pastores evangélicos da Bahia. Apesar de policial, rejeitava o principal discurso da campanha de Jair Bolsonaro — o apoio à violência policial contra bandidos. ‘A história da pistola e de que bandido bom é bandido morto, não gosto. Não é verdadeiro. Primeiro é preciso saber quem criou o tráfico. Não foi o tecido social fragilizado? E quem fragilizou o tecido não foram os políticos do passado com a sociedade conivente? Governo não tem nada a ver com pistola. Policial que mata vai ser premiado? Quem não mata é menos policial? Quem vai escolher esses mortos? Lamentavelmente, na igreja evangélica, esse discurso funcionou. Mas onde está dizendo na Bíblia que bandido bom é bandido morto? A Bíblia diz amai-vos’”.