O pastor Ricardo Gondim assumiu há anos uma militância de esquerda nas redes sociais e em artigos publicados em seu site, e agora, às vésperas da campanha eleitoral que culminará com um novo presidente, o veterano líder evangélico fez críticas agudas ao movimento conservador e o principal ícone que surge como representante desse grupo da sociedade: Jair Bolsonaro.
As críticas de militantes de esquerda aos representantes do conservadorismo, agrupados sob o espectro da “direita”, sempre vêm carregadas de rótulos como “retrocesso”, “fascismo”, “opressão”, etc., enquanto a resposta de quem discorda aponta a corrupção, como principal característica da esquerda, acompanhada de desvalorização da família, apologia ao aborto e à “liberdade” sexual.
Gondim, no entanto, foge aos rótulos comuns na construção de sua crítica, embora repita os argumentos. O artigo A caricatura evangélica traz, novamente, a exposição da visão extremamente aguda do pastor da Igreja Betesda ao segmento do qual ele diz ter se divorciado há anos.
A construção do argumento de Ricardo Gondim se vale da reciclagem de críticas ao presidente norte-americano Donald Trump, afim de comparar Bolsonaro com os escândalos do passado do bilionário que ascendeu à Casa Branca.
“Com o avanço da direita religiosa dos Estados Unidos, a era Trump expõe os exageros do movimento evangélico. Hipocrisia, venalidade e vassalagem tornam, a cada dia, a caricatura mais evidente. Teólogos, sociólogos e filósofos de todas as tendências se perguntam: o quê os crentes conservadores viram em Donald Trump? Como embarcaram com malas e cuias no Titanic de um maluco bilionário, dono de cassino? A pergunta feita lá tem implicações diretas aqui, em terras tupiniquins. Bolsonaro, mesmo mais parecido com um Bateau Mouche que um Titanic, pode produzir um naufrágio épico para o Brasil”, afirma Gondim.
As críticas a Trump, em muitos casos, são justas. Assim como a Bolsonaro. Ambos são verborrágicos, afeitos ao confronto e causam dúvida em quem os analisa friamente. Porém, a análise fria também requer a exposição das conquistas do presidente dos EUA em quase 1 ano e meio de mandato, como recuperação da economia e emprego, corte de impostos e novos acordos comerciais favoráveis à nação com quem tem responsabilidade, assim como o combate à perseguição religiosa a cristãos no mundo, corte de verbas às clínicas que incentivam e praticam o aborto, entre outras iniciativas de cunho conservador.
Se Bolsonaro repetirá, caso eleito, o mesmo desempenho de Trump, não se sabe. Mas, segundo Gondim, a ascensão de alguém como o capitão do Exército é culpa das igrejas, e não dos desmandos da esquerda.
“Tomo conhecimento de uma forte mobilização de igrejas evangélicas históricas para comporem a tripulação da nau fascista capitaneada por Bolsonaro – com comitês eleitorais e tudo. Eles querem um crente na presidência a qualquer custo. Insisto: por aqui, a tragédia de um Trump meia boca seria tenebrosa; e o custo de vidas, incalculável. – mais que do Titanic e do Bateau Mouche somados”, alarmiza o pastor.
“Os crentes acreditam que o mundo está em guerra contra o reino de Deus. Existem sim inúmeras passagens bíblicas, principalmente nos textos atribuídos a Paulo, que descrevem uma guerra entre forças divinas e mundanas. Algumas epístolas se valem, inclusive, da linguagem militar. Os crentes partem daí e interpretam a palavra ‘mundo’ como a realidade toda. Mundo para eles é a vida (Nem entro nas minúcias linguísticas que distinguem mundo como pessoas, mundo como planeta e mundo como sistema injusto). Na teologia do movimento, mundo é a erudição, o saber acadêmico, as artes, o lazer, a ciência, a medicina, o prazer sexual. Tudo que não é ‘espiritual’“, afirma Gondim.
O tom adotado pelo pastor na crítica aos irmãos de denominações que não seguem a visão relativista e liberal que ele adotou para seu ministério – como por exemplo, a pormenorização da homossexualidade como pecado – expõe muito do que Gondim não enfatiza com suas palavras, levantando a dúvida se há preconceito contra quem pensa diferente.
“Tratam como herói quem se coloca como soldado no combate ao ‘mundo’. A pessoa declara guerra ao mundo e passa a ser amiga de Deus. A teologia evangélica ainda faz ‘cruzada’. O propósito dessa guerra santa é reconquistar os ‘valores judaico-cristãos’; tirar das mãos de pessoas mundanas e devolver à igreja. E isso é tão absolutamente importante para a mentalidade evangélica que alguns se dispõe a fazer aliança com o diabo para salvar o mundo do mundo”, argumenta.
Desdém
A postura ácida de Gondim contra os evangélicos avança pelo campo teológico, e o pastor novamente ironiza, dessa vez com quem acredita que a Salvação é alcançada a partir da confissão: “Os evangélicos acreditam que todas as pessoas que ainda ‘não aceitaram Jesus como único e suficiente salvador’ já estão condenadas ao inferno. O lago de fogo e de enxofre, em processo de aquecimento, receberá todos os que ainda não declararam: ‘Eu aceito Jesus’. Basta falar. A salvação fica garantida, automaticamente, a quem confessar com os lábios: ‘Jesus é o Senhor’”.
“Essa teologia preconiza que o pecado de Adão condenou toda a humanidade. Todas as pessoas, antes de nascerem, são alvos da ira de Deus. O sacrifício de Jesus, todavia, as salvou. Só quem aceitar o sacrifício vai para o céu. Há inclusive a discussão, com versículos e tudo, se essa salvação é eterna. Alguns insistem: ‘uma vez salvo, para sempre salvo’. Exemplo: Trump pode ser um crápula, malvado, mulherengo, vil, frio. Contudo, se em alguma ocasião, ou em reunião com pastores, (ele nem frequenta igreja) balbuciou com os lábios a frase, está salvo para sempre. Nem que tente conseguiria revogar a salvação que recebeu pelos méritos de Jesus. Sendo assim, o mundo se divide entre salvos e perdidos”, ironiza.
A partir do contexto no argumento, Gondim dispara acusações a fiéis e políticos: “É por isso que Bolsonaro fez questão de mostrar ao mundo evangélico que está salvo, já que se batizou no rio Jordão – o que não é pouca coisa. Mesmo que não mostre nenhum fruto de arrependimento, está salvo. Deus usa esses ‘vasos de barro’. Trump e Bolsonaro, ‘vasos’ (mesmo trincados), salvarão mais pessoas”.
Embora negue versar com o teísmo aberto (pensamento filosófico que nega a onipresença, onisciência e onipotência de Deus), Gondim explora as fronteiras dessa linha de raciocínio em seu penúltimo parágrafo:
“A teologia evangélica, mesmo arminiana, mesmo progressista, mesmo de esquerda, crê que Deus preestabeleceu a história. Ele tem tudo sob seu mais rigoroso controle. Portanto, Javé gerencia o desenrolar do tempo nos mínimos detalhes. Deus conduzirá a história a um fim glorioso. Assim como usou Ciro da Pérsia lá atrás para fazer bem a Israel, Deus usa quem escolhe”, escreve Ricardo Gondim, sem regular sarcasmo.
“Trump, Bolsonaro, Pinochet, Stalin, Hitler, são guiados, mesmo que não saibam, por uma vontade soberana. Deus põe cabresto em quem desejar, e usa quem assim decidir. Ele defende os interesses do seu reino e não tem satisfações a dar a ninguém. Secularização, ameaça de comunistas, gays, anarquistas, roqueiros, baladeiros, serão enfrentadas pelo Senhor e por pessoas que ele instrumentalizar. Ouvi diversas vezes: ‘Deus usou um jumento, por que não pode levantar um Bolsonaro para cumprir a sua vontade?’ O argumento é esdrúxulo. Ora, também as caricaturas. Porém, no exagero da tolice se evidencia o que a gente não queria, ou não conseguia, perceber”, acrescenta.
Ao final, Ricardo Gondim admite não crer no poder de Deus, mas nas iniciativas humanas, diz que “o custo será um futuro pavoroso” se Bolsonaro chegar à presidência. “Ou não é ameaçador ver cristão aplaudindo político de quinta categoria?”, encerra.