Em entrevista concedida ao site do Instituto Humanas Unisinos, órgão que promove debates e discussões sobre teologia pública, entre outros assuntos, Magali Cunha analisou a campanha da Frente Parlamentar Evangélica em favor da abertura do processo de impeachment na Câmara dos Deputados e disse existir um “jogo de interesses” e que a Frente Evangélica procura “estar ao lado de quem se revela fortalecido, como de quem, certamente, favorecerá as pautas conservadoras”.
Magali Cunha, docente da Universidade Metodista de São Paulo e pesquisadora sobre a bancada evangélica, diz que há uma contradição na postura da FPE (Frente Parlamentar Evangélica) quando afirma que após o apoio ao governo Lula e o primeiro mandato da presidente Dilma, a FPE hoje está mais próxima do vice-presidente e já declarou “apoio formal” a um possível governo Temer.
Na entrevista ela informa que, segundo dados divulgados pela FPE, 91 nomes foram apresentados na lista dos apoiadores e contrários ao impeachment da presidente. Contudo, ela diz que existe uma mistura, pois há nela muitos católicos, inclusive praticantes, ligados à Renovação Carismática, e muitos deputados eleitos com apoio de igrejas evangélicas, por conta de compromissos regionais, mas não são vinculados a elas.
Magali avalia que a lista tem relevância pois os deputados evangélicos conseguiram alianças importantes mesmo entre aqueles que não professam sua fé. E dessa forma, o número aumenta: são 199 deputados e quatro senadores. É um número de peso numa votação na Câmara, levando-se em conta que apenas sete votaram contra o impeachment.
Confira a entrevista a seguir.
IHU – Qual foi o peso dos religiosos de modo geral e da Frente Parlamentar Evangélica na votação da admissibilidade do impeachment na Câmara dos Deputados? Caso a bancada votasse contra a admissibilidade, isso teria feito diferença em termos de números?
Magali Cunha – É sempre bom registrar que há muita controvérsia quando tratamos a “Bancada Evangélica” em termos de números, especialmente quando se aborda “Bancada Evangélica” como sinônimo de “Frente Parlamentar Evangélica”. Eu prefiro, nas minhas pesquisas, distinguir as duas, apesar de, quando criada e registrada em 2003, a FPE fosse composta de deputados e senadores de igrejas evangélicas identificados com a fé evangélica. O levantamento que fiz de eleitos em 2014 com este perfil revelou 72 nomes.
É interessante que a própria FPE, quando divulgou listas de apoiadores e contrários ao impeachment da Presidente Dilma Rousseff como campanha para que os evangélicos pressionassem os indecisos, apresentou 91 nomes.
No levantamento mais recente que fiz, pesquisando em páginas eletrônicas e redes sociais digitais dos deputados e das igrejas indicadas como vinculação nestas listas, cheguei a 94 nomes (contando os licenciados e suplentes em exercício) – cinco deles não considerados na lista da FPE (votaram contra o impeachment).
De qualquer forma, creio que a lista registrada na Câmara diz muito em termos das alianças que os deputados evangélicos conseguiram formar em torno de suas propostas: são signatários aqueles que se unem aos deputados evangélicos em suas pautas apesar de não professarem sua fé. E aí o número é bem significativo: são 199 deputados e quatro senadores. É um número de peso numa votação na Câmara, levando-se em conta que apenas sete votaram contra o impeachment. Se considerarmos os que são evangélicos de fato, já seria um número a fazer diferença, caso a bancada fosse contrária à admissibilidade do processo.
IHU – Na última semana, muito se disse em relação à postura dos deputados brasileiros na votação da admissibilidade do impeachment na Câmara, que não apresentaram argumentos para a votação. Neste ponto, como se posicionaram os religiosos e a FPE?
Magali Cunha – A postura foi a mesma: superficial, vazia. Ao se estudar cada um dos discursos que precederam o voto, eles são dedicações “à família” ou a nomes de pessoas da família, às cidades de vinculação, a Deus, às igrejas a que pertencem, aos cristãos em geral, até mesmo à Nação de Israel. Menos de uma dezena fez alguma menção ao processo, de que existe crime de responsabilidade, sem, no entanto, se explicitar qual.
IHU – Como tem se dado a atuação política dos religiosos e da FPE nos últimos anos? Que pautas eles têm defendido?
Magali Cunha – Desde a legislatura 2011-2014, é possível notar uma mudança na atuação da bancada evangélica com a defesa de pautas conservadoras e reacionárias a avanços sociais alcançados, especialmente aqueles no campo dos direitos sexuais e de gênero. Como encontraram eco nesse discurso com a parcela conservadora da sociedade brasileira, incomodada com as mudanças, foram fortalecidos nestas pautas.
O episódio da indicação do deputado Pastor Marco Feliciano (PSC-SP) à presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados em 2013 foi mais um fator que potencializou esta força que a bancada estava adquirindo, o que motivou o lançamento da candidatura do Pastor Everaldo (PSC) à Presidência da República em 2014, como “candidato dos evangélicos”. Tudo isto tornou possível a reconfiguração da bancada evangélica como uma força conservadora no Congresso Nacional. Junto com isto, soma-se o fato de que o corpo parlamentar eleito em 2014 tem o perfil mais conservador desde a ditadura civil-militar.
Então, nesta legislatura, vemos a bancada evangélica avançando para além das pautas da clássica moralidade religiosa, de controle dos corpos, para apoiar explicitamente e até mesmo liderar pautas como a diminuição da maioridade penal, a PEC “Ruralista” 215, da Demarcação das Terras Indígenas, a terceirização do trabalho, entre outras. Este é um fenômeno muito novo, amplificado pela eleição do deputado evangélico Eduardo Cunha à Presidência da Câmara, já que ele foi o facilitador destas pautas.
IHU – Como os religiosos e a bancada se relacionaram com os governos Lula e Dilma?
Magali Cunha – Em geral, a relação dos evangélicos com os governos é definida por um forte pragmatismo. Se Lula em 1989 era interpretado e disseminado nas igrejas como representante do mal e perseguidor de cristãos, com os ventos soprando outros ares em 2002, Lula foi eleito com amplo apoio da Igreja Universal do Reino de Deus – que passou a ocupar o partido fundado pelo então vice-presidente da República José de Alencar, o PRB -, de parcelas da Assembleia de Deus e de muitos segmentos evangélicos mais progressistas. Houve afagos dos governos Lula e Dilma aos evangélicos, como a indicação de ministros do PRB ligados à Igreja Universal, e o amplo acesso de lideranças religiosas a segmentos governamentais.
No entanto, os avanços sociais que tocaram em temas caros às lideranças evangélicas, predominantemente conservadoras, aqueles da moralidade cristã em relação ao corpo, que Lula evitou ressaltar, vieram à tona com força na campanha de Dilma Rousseff em 2010. E isto foi o pano de fundo para uma articulação conservadora naquela mesma campanha de 2010, que, a partir do reforço da bancada na nova legislatura, descrito aqui, ganhou fôlego na campanha de 2014, atingindo em cheio o segundo governo Dilma, eleito já com dificuldade.
A crise política e a decorrente crise econômica que geraram a perda de credibilidade da Presidente durante o ano de 2015, provocando todos os protestos e fortalecendo a campanha pró-impeachment que permeou toda a discussão política neste ano, só fizeram ressaltar o pragmatismo entre os políticos evangélicos e as lideranças de suas igrejas, a ponto de a Igreja Universal do Reino de Deus, até então grande apoiadora, retirar-se do governo por meio da saída do PRB da base aliada. O mesmo ocorre com a parcela da Assembleia de Deus que vinha no apoio ao governo.
IHU – É possível identificar qual é a posição política dos religiosos e da bancada evangélica hoje?
Magali Cunha – Estão muito fortalecidos como um bloco conservador que articula pautas. Fizeram uma campanha forte pelo voto a favor da abertura do processo de impeachment na bancada, revelando até mesmo antes da sessão apoio ao vice-presidente Michel Temer, e tiveram sucesso no resultado. E ainda têm o amplo apoio das grandes mídias que reforçam suas posições e de seus apoiadores, como é o caso da acreditação do Pastor Silas Malafaia (Assembleia de Deus Vitória em Cristo) como porta-voz dos evangélicos, tendo farto espaço no noticiário para opinar sobre as situações que envolvem as disputas políticas.
É uma investida interessante, pois ela se contrapõe à postura dos eleitores evangélicos quando se trata de cargos majoritários. Vide o fracasso da candidatura do Pastor Everaldo, e a vitória de Dilma Rousseff apesar de toda a campanha de oposição. Isso também pode ser percebido em outros níveis, como a não eleição de Marcelo Crivella ao governo do Rio de Janeiro e de Celso Russomano à prefeitura de São Paulo. A bancada evangélica não representa os evangélicos, mas pela falta de discussão mais pública e acessível sobre isto, é justamente o oposto o que esses políticos usam em suas campanhas.
IHU – O que deve mudar num eventual governo Temer em termos de pautas? Como deve ser a relação deles, que já estão mais próximos do vice-presidente?
Magali Cunha – Já estão próximos e já declararam apoio formal, apagando a memória de que estes mesmos religiosos conservadores fizeram campanha contra a chapa de Dilma Rousseff em 2010, acusando-a de “satanista”. É o pragmatismo e o jogo de interesses que fala mais forte, sempre, tanto do ponto de vista de se estar ao lado de quem se revela fortalecido, como de quem, certamente, favorecerá as pautas conservadoras tão caras aos evangélicos que se sentem à vontade hoje, no parlamento, para trabalhar retrocessos.