A liberdade religiosa no Brasil parece já não existir como antes, onde a livre pregação era um direito inviolável. Agora, com a propagação de narrativas como “discurso de ódio” e até “racismo religioso”, o sistema Judiciário vem sendo usado como arbítrio da fé alheia, a fim de punir figuras como o pastor Aijalon Florêncio, segundo o editorial do jornal Gazeta do Povo.
Florêncio foi condenado à prisão recentemente, simplesmente por publicar mensagens ligando símbolos das religiões de matriz africana, como o candomblé, à ação demoníaca, conforme o GospelMais noticiou um mês atrás.
Em seu editorial, o jornal Gazeta do Povo critica a postura do Judiciário pernambucano sobre o caso, apontando que a justiça estadual ignorou jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que ao julgar um caso semelhante, decidiu em favor da liberdade religiosa.
“É evidente que o pastor não está incitando nenhum tipo de animosidade contra membros de religiões de matriz africana”, diz o jornal. “O que Florêncio faz, e de forma bastante veemente, é a crítica a conteúdos dessas religiões”.
A Gazeta do Povo argumenta que a divergência religiosa é natural, bem como a exposição de ideias que contrariam a fé alheia, já que doutrinas diferentes notadamente se chocam.
Classificar como “discurso de ódio” ou “racismo religioso” a pregação cristã ou qualquer outra, sem que exista qualquer incitação à violência ou à discriminação, trata-se de restringir a liberdade religiosa, consequentemente a criminalização do pensamento baseado em determinadas doutrinas.
“Quem crê que sua religião é verdadeira afirmará, na grande maioria dos casos, que as outras não são apenas ‘piores’, mas que são falsas, já que as inúmeras fés existentes no mundo discordam entre si, seja em detalhes, seja em aspectos essenciais”, diz o editorial.
E continua: “Neste processo, necessariamente haverá a crítica a dogmas e crenças alheias, e o esforço para demonstrar que elas contrariam a evidência física, a lógica ou algum livro sagrado”.
“Prendam todos”
A condenação do pastor Aijalon Florêncio provocou a reação de outros líderes cristãos, como os teólogos Guilherme de Carvalho e Yago Martins. Esse último, do canal Dois Dedos de Teologia, reafirmou as palavras do colega, lembrando passagens como 1Coríntios 10 e João 14: 6, que tratam do caráter exclusivo da adoração a Deus.
“Qualquer religião que não seja a cristã é falsa. Todo sacrifício feito a outros deuses é feito a demônios. No islamismo, adoram demônios. No candomblé, adoram demônios. Na umbanda, adoram demônios. Se todo pastor for ser preso por pregar o que diz a Bíblia, que nos prendam todos”, comentou Martins.
Leia a íntegra do editorial da Gazeta do Povo, abaixo:
A disposição do Estado brasileiro em proteger a liberdade religiosa está sendo novamente colocada à prova, em mais um caso no qual o conceito de “discurso de ódio” está sendo empregado como muleta para calar líderes religiosos. No mesmo estado onde um padre católico chegou a ter inquérito instaurado em 2019 por criticar a decisão do Supremo Tribunal Federal que equiparou a homofobia ao racismo, um pastor evangélico acaba de ser condenado por defender aquilo que sua religião e seu livro sagrado afirma sobre divindades de outras religiões.
Em julho de 2021, Aijalon Florêncio, pastor de uma igreja evangélica em Pernambuco, usou o Instagram para criticar murais pintados no Túnel da Abolição, no Recife, com referências a elementos de religiões de matriz africana. Fez diversas referências a “feitiçaria”, afirmou que as pinturas faziam “reverência a entidades malignas, satânicas, espíritos das trevas”, que “entidades adoradas dentro da mitologia, até mesmo dentro das religiões de matriz africana, são demônios”, e que “satanás está querendo estabelecer portais para escravizar, aprisionar e inebriar vidas e cidades”. Foi denunciado pelo Ministério Público por crime de discriminação racial e religiosa, com base no artigo 20 da Lei 7.716/89, que pune o ato de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, com a agravante prevista no parágrafo 2.º, já que houve publicação em mídias sociais.
O alcance da liberdade religiosa foi mal interpretado pela Justiça pernambucana, que aceitou a argumentação cada vez mais comum que qualifica como “discurso de ódio” afirmações das quais se discorda
Em setembro deste ano, Florêncio foi condenado pela juíza Ana Cecília Vieira Pinto a dois anos e meio de prisão. A pena é mais próxima da punição mínima que da máxima, já que a Lei 7.716 prevê de dois a cinco anos de reclusão neste caso. O pastor terá o direito de recorrer em liberdade – a sentença veio acompanhada de uma ordem de soltura, pois Florêncio estava preso preventivamente desde abril de 2023. No entanto, a magistrada pesou a mão na multa, condenando o líder evangélico a pagar desproporcionais R$ 100 mil a título de danos morais.
Apesar de Florêncio ter desrespeitado uma série de medidas cautelares que lhe foram impostas no curso do processo, como a ordem de apagar a publicação, e ainda por cima ter publicado novos conteúdos com críticas ao MP e ao Judiciário – circunstâncias que levaram à ordem de prisão preventiva –, o fato é que a condenação de setembro foi motivada pelo teor de suas afirmações, e aqui é preciso lembrar o alcance de uma das liberdades democráticas mais fundamentais, a liberdade religiosa, e como ela foi mal interpretada pela Justiça pernambucana, que aceitou a argumentação cada vez mais comum que qualifica como “discurso de ódio” afirmações das quais se discorda. A escolha da Lei Antirracismo (7.716/89) – que, apesar do nome comum, criminaliza não só o preconceito motivado por raça ou cor, mas também por religião ou procedência nacional – acaba por fragilizar a acusação.
Afinal, é evidente que o pastor nãoestá incitando nenhum tipo de animosidade contra membros de religiões de matrizafricana – cujos adeptos, aliás, não incluem apenas negros, assim como hánegros que não professam esta fé –; também não diz que os fiéis devam ser alvode nenhum tipo de discriminação, ou ter seus direitos restringidos. O que Florênciofaz, e de forma bastante veemente, é a crítica a conteúdos dessas religiões; dadoque a religião é tida como algo essencial para a vida de muitas pessoas,compreende-se que elas se sintam ofendidas diante de críticas à sua crença; noentanto, é preciso repetir, não há incitação alguma a qualquer tipo de discriminaçãocontra os adeptos das religiões de matriz africana. Por mais que testemunhastenham afirmado sofrer ameaças – inclusive ameaças de morte – após a publicaçãodo vídeo, é preciso analisá-lo pelo que efetivamente foi dito, e o conteúdo nãotraz incitação a ameaças; quem deve ser punido, neste caso, é aquele que,extrapolando o teor das palavras do pastor, resolveu por conta própria ameaçara integridade física de praticantes do candomblé.
É sintomático que a juíza Ana Cecília Vieira Pinto tenha ignorado a jurisprudência do STF em um caso bastante semelhante, e que fora citado pela defesa do pastor. Em novembro de 2016, a Primeira Turma arquivou uma denúncia contra o padre católico Jonas Abib, que em um livro havia feito críticas ao espiritismo e também ao candomblé, e fora denunciado também com base na Lei 7.716/89. Na ocasião, o relator, Edson Fachin, afirmou que, “apesar de as afirmações serem indiscutivelmente intolerantes, pedantes e prepotentes, entendo que elas encontram guarida na liberdade de expressão religiosa e, em tal dimensão, ainda que reprováveis do ponto de vista moral e ético, não preenchem o âmbito proibitivo da norma penal incriminadora”, sendo seguido por Rosa Weber, Marco Aurélio Mello e Luís Roberto Barroso – apenas Luiz Fux votou de forma contrária. Este é um raciocínio que merece atenção: é evidente que o líder religioso não tem o direito de afirmar qualquer coisa pelo mero fato de ser um líder religioso; mas a crítica de cunho religioso – ainda que seja descabida, ainda que seja feita de forma arrogante ou insensata – está constitucionalmente protegida, e o Judiciário não é árbitro da fé de ninguém, nem definidor de quais conceitos teológicos são certos ou errados, bons ou maus.
A crítica de cunho religioso – ainda que seja descabida, ainda que seja feita de forma arrogante ou insensata – está constitucionalmente protegida, e o Judiciário não é árbitro da fé de ninguém
Na mesma decisão da Primeira Turma, Fachin ressaltou o caráter universalista de muitas religiões, que “almejam converter o maior número possível de pessoas”, e reconhece que “o proselitismo religioso, em diversas oportunidades, é implementado à luz de um contraste entre as mais diversas religiões (…), almejando demonstrar a superioridade de suas próprias crenças”. Mas não se trata apenas disso. Aplicando-se o princípio de não contradição, quem crê que sua religião é verdadeira afirmará, na grande maioria dos casos, que as outras não são apenas “piores”, mas que são falsas, já que as inúmeras fés existentes no mundo discordam entre si, seja em detalhes, seja em aspectos essenciais. Neste processo, necessariamente haverá a crítica a dogmas e crenças alheias, e o esforço para demonstrar que elas contrariam a evidência física, a lógica ou algum livro sagrado. “Esse proselitismo, portanto, ainda que acarrete incômodas comparações religiosas, não materializa, por si só, o espaço normativo dedicado à incriminação de condutas preconceituosas (…) a tentativa de convencimento pela fé, sem contornos de violência ou desrespeito à dignidade humana, está dentro das balizas da tolerância”, continua Fachin, lembrando que quem evangeliza acredita piamente estar buscando o melhor para os demais, ao levá-los do que considera ser um erro para o que julga ser a verdade – ainda que a pessoa que recebe a pregação possa não enxergar desta forma.
Por fim, o ministro afirma em que situações o proselitismo poderia se converter em preconceito real. “Eventual animosidade decorrente de observações desigualadoras não configura, necessariamente, preconceito ou discriminação”, afirma Fachin, acrescentando que “a comparação entre crenças e a ocorrência de explicitações quanto à mais adequada entre elas é da essencialidade da liberdade de expressão religiosa”. No entanto, a situação muda quando “se exterioriza a necessidade ou legitimidade de exploração, escravização ou eliminação do indivíduo ou grupo considerado inferior”. Se houver “não apenas a finalidade de eliminação, mas também o intuito de supressão ou redução de direitos fundamentais sob razões religiosas”, o discurso religioso já não tem proteção constitucional. No entanto, a sentença não demonstra como o vídeo do pastor Florêncio cumpriria este requisito.
Os mais familiarizados com casos de intolerância religiosa ainda haverão de se perguntar se o pastor não teria violado o artigo 208 do Código Penal. O crime de “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso” é punido com prisão de até um ano – mas pode prescrever, ao contrário dos crimes da Lei 7.716, e isso pode explicar a opção do MP em oferecer denúncias com base na Lei Antirracismo. O pastor Florêncio não atacou os praticantes do candomblé e não incitou o ataque a terreiros – nem mesmo sugeriu vandalismo contra o mural recifense. No entanto, afirmou que os orixás das religiões de matriz africana são demônios, e isso poderia se encaixar em uma definição mais aberta de “vilipêndio”, que transcende o ataque físico a um objeto sagrado para incluir também a crítica ou o escárnio dirigido a personagens tidas como sagradas: Jesus Cristo, a Virgem Maria, os santos católicos, Maomé, e divindades de qualquer panteão.
No entanto, também aqui há uma distinção a fazer. Mesmo quem considere que as charges satíricas do Charlie Hebdo, se fossem publicadas no Brasil, ou os vídeos do grupo Porta dos Fundos poderiam ser enquadrados no artigo 208 haverá de reconhecer que estamos diante de uma situação diferente quando a crítica à figura sagrada alheia se dá em um contexto de discurso ou proselitismo religioso. Já não se trata da intenção pura e simples de achincalhar, mas de defender a visão que uma fé tem a respeito de quem é venerado por outra fé. Não faz o menor sentido, por exemplo, acionar o braço estatal contra um pastor ou apologeta protestante que dissesse algo como “Maria é uma mulher como as outras” – ainda que isso ofendesse profundamente inúmeros católicos. Da mesma forma, para uma religião que cultua determinado deus, as divindades de outras religiões provavelmente serão consideradas falsas e até mesmo manifestações demoníacas. O fato de uma afirmação como esta ferir o sentimento de muitos fiéis, ainda mais quando feita de forma dura ou enfática, não a torna automaticamente criminosa. Repetimos aqui a argumentação de Edson Fachin: “a comparação entre crenças (…) é da essencialidade da liberdade de expressão religiosa” – e esta comparação há de incluir a comparação não apenas entre dogmas e princípios, mas também entre divindades ou figuras sagradas.
Não é preciso concordar com as ideias defendidas pelo pastor Aijalon Florêncio, nem com o tom empregado por ele em seus vídeos, para atestar que seu discurso está protegido pela liberdade religiosa, e por isso não poderia ser coibido pelo Estado. Ao condená-lo por uma discriminação que ele não incitou, o Judiciário pernambucano ainda se arrogou o papel de teólogo, avaliando conceitos teológicos como “deus” e “demônio”, atribuindo-lhe valoração e julgando de acordo com essa valoração. A correta compreensão da laicidade do Estado e da proteção do discurso religioso, tão bem defendida pelo STF no caso do padre Jonas Abib, foi sumariamente ignorada em Pernambuco.