Desde o discurso do presidente Jair Bolsonaro na 75ª Assembleia Geral da ONU, quando o tema cristofobia recebeu destaque, uma polêmica iniciada a partir de uma interpretação equivocada da referência ganhou força. Desde então, especialistas no assunto vêm apontando informações que justificam a abordagem feita pelo mandatário e dão noção do que se trata à grande parte da população.
A violência simbólica contra cristãos no Brasil é um fato, que pode ser exemplificado com os casos do Especial de Natal do Porta dos Fundos, veiculado pela Netflix; a exposição “Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira”, em 2018; a Marcha das Vadias durante a visita do papa Francisco ao Brasil em 2013; e também as frequentes decisões judiciais que tentam impedir manifestações religiosas usando sob o pretexto da laicidade do Estado, dentre outros casos.
Embora haja esse tipo de indisposição de parte da sociedade contra os cristãos, a ênfase que o presidente Jair Bolsonaro deu foi aos fatos ocorridos mundo afora: “A liberdade é o bem maior da humanidade. Faço um apelo a toda comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia”, disse o presidente na ocasião.
Em entrevista ao jornal Gazeta do Povo, o jurista Jean Regina, membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP), reiterou que o contexto da fala do presidente sugere que ele se referia ao âmbito internacional. “Fica claro no discurso do presidente que ele está falando de cristofobia no mundo”.
“O ângulo que foi dado à fala denota muito como a comunidade vê o assunto. As pessoas enxergarem a fala sobre a cristofobia como uma politização para jogar confete para a bancada evangélica é ridículo, porque a cristofobia está acontecendo no Egito, na Nigéria, no Sudão, no Congo, no Iraque”, pontua o jurista.
No entanto, ele acredita que a violência simbólica contra cristãos no Brasil acende uma luz de alerta “O que existe, e é crescente, é um momento significativo de violência simbólica para com o elemento religioso”.
O ponto de vista do historiador Julio Cesar Chaves, doutor em Ciências da Religiões pela Université Laval e professor da UPIS – Faculdades Integradas, o que há de mais urgente é a situação de cristãos que morrem por sua fé em Jesus Cristo: “Há países em que o cristianismo é ilegal, como na Arábia Saudita”.
“Nesses países, existe, sim, uma perseguição ferrenha aos cristãos. Cristãos são mortos por serem cristãos, sequestrados, torturados, executados… Nada disso acontece no Brasil. Se eu uso a palavra cristofobia para ficar me referindo a post de internet… Tudo bem, eu posso até usar esse termo, mas aí eu vou usar qual termo para falar sobre o que acontece com os cristãos no Oriente Médio?”, questiona o historiador.
Sobre a violência simbólica, Chaves encaixa em um termo conhecido há um pouco mais de tempo para quem frequenta as redes sociais: “É inegável que existe, hoje, no Brasil, certo discurso de ódio de alguns setores em relação aos cristãos – de maneira mais específica, em relação aos evangélicos e, de maneira mais específica ainda, em relação aos neopentecostais”, contextualizou.
Esse cenário indica que há uma trilha clara que a sociedade brasileira vem percorrendo “de forma acelerada para a cristofobia” na visão do jurista Thiago Viera, presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião: “Estamos vendo vários setores da mídia, vários setores artísticos batendo em evangélicos, utilizando filmes, satirizando ícones sagrados, fazendo obras de arte também nesse sentido, obras cinematográficas no Netflix, artigos de diversos colunistas em diversas mídias jornalísticas dizendo que o Brasil vive na teocracia, que é absurdo um evangélico ser ministro”, exemplifica.
Vieira entende que a chance de toda essa retórica se transformar em violência literal é grande: “Está cada vez mais cáustico, cada vez mais agressivo. Até onde vai essa agressividade? Eu não sei se daqui a pouco vai desembocar para a violência real”, comenta. “A Lei do Racismo já prevê, no seu artigo 20, que, além do racismo étnico, existe a intolerância religiosa. O crime de cristofobia já existe no Brasil, e esse não por decisão do STF, mas porque está na lei”, resume o jurista, pontuando que o risco de a situação se agravar já foi, inclusive, previsto pelo Poder Legislativo.
Cristofobia no mundo
Marco Cruz, secretário-geral no Brasil da Missão Portas Abertas – que se dedica a prestar apoio a cristãos perseguidos no mundo – avalia que a situação do Brasil não é comparável ao cenário em dezenas de países mundo afora.
“Consideramos o Brasil um país livre, um país onde as pessoas têm a liberdade de expressar sua fé. Não acontece perseguição de maneira sistemática contra os cristãos. Nós temos liberdade. Eu sou cristão batista e vou à igreja, tem várias igrejas aqui no bairro. O Brasil não é alvo do nosso trabalho de apoio à igreja perseguida”, contextualiza Cruz.
Apesar de a violência simbólica indicar um cenário de hostilidade, Cruz entende que há uma diferença relevante em relação ao cenário que Bolsonaro alertou na ONU: “Falo isso comparando o Brasil com um país como a Coreia do Norte, que é o primeiro país da nossa lista mundial de perseguição. Lá é proibido ser cristão. Tem cerca de 300 mil cristãos secretos. Noventa mil em campos de trabalho forçado”, afirma.
“Estive em vários desses países. No Iraque, por exemplo, que foi alvo do ataque dos extremistas do Estado Islâmico, milhares de famílias foram expulsas da região de Mossul. A gente atende a essas famílias com cestas básicas. Elas estão morando em contêineres em campos de refugiados. São mil contêineres, mais de 5 mil pessoas que pelo fato de serem cristãs foram expulsas das suas terras”, acrescenta.
Por fim, Marco Cruz indica que a fala de Bolsonaro indica um cenário real, embora a Portas Abertas não se dedique a endossar ou repelir o tema no âmbito político: “Um estadista falar do tema da liberdade religiosa para todos é muito importante. Falar dos cristãos, que são um grupo muito perseguido, isso também é importante. Isso é o aspecto positivo. Agora, politizar o tema não é nosso trabalho”, encerra.